Fiquei a saber que o Prof. Elísio Macamo reagiu com outra meia dúzia de textos à crítica que fizemos ao modo snob como leu o livro de Joseph Hanlon. Pelo modo virulento com que respondeu, mesmo que oculto numa linguagem pedagógica e cordial, só veio a reproduzir, mais uma vez, a altivez de um modelo de pensar onde o conhecimento é tratado como propriedade de uma elite intelectual que “deposita” saberes nas mentes dos “menos esclarecidos”. Nesse exercício recorrente, ele nem sequer estranha a razão dos seus próprios pares não ligarem à mínima para o que escreve. Quase ninguém comenta os seus dizeres, muito provavelmente por já saberem quem ele é e o que ele significa ou representa, no nosso pequeno mercado de ideias.
Ele sabe muito, sem dúvidas. Nessa geografia da arrogância de saber que sabe muito, parece estar cada vez mais a falar para si próprio. Por exemplo, ao estabelecer uma hierarquia rígida entre quem “analisa correctamente” Moçambique e os seus processos sociopolíticos – os académicos com método – e quem apenas “constata” ou “denuncia” – os jornalistas e/ou activistas –, Macamo erige-se como uma espécie de guardião dos critérios de validação do conhecimento científico sobre Moçambique, decidindo o que é ou não é pensamento legítimo.
Como diria Paulo Freire, há sempre uma relação dialógica entre texto e contexto, independentemente de quem o redige, e é o efeito que isso causa no leitor o que legitima se tal conhecimento e/ou informação são por ele devidamente apropriados e passa a ser relevante para a sua própria transformação. Um verdadeiro educador (ou cientista social, já agora) deveria, elementarmente, saber disso. Afinal, não existe leitura neutra, apenas leituras situadas em corpos, histórias e lugares concretos. A partir daí, o que legitima o conhecimento não é a sua conformidade a protocolos metodológicos abstractos, mas a sua capacidade de ser apropriado pelo leitor dentro do seu contexto vivido, tornando-se ferramenta para compreensão e transformação da realidade.
Dito de forma simples, quando Joseph Hanlon escreve sobre a recolonização via corrupção em Moçambique, o teste de validade do seu trabalho não reside em satisfazer os critérios analíticos de Macamo, mas em dialogar efectiva e eficazmente com moçambicanos que experimentam diariamente essa recolonização: o camponês de Cabo Delgado que vê a sua terra devastada, o funcionário público que testemunha licitações fraudulentas, a professora que não recebe salário regularmente enquanto alguns poucos enriquecem pornograficamente. Se essas pessoas reconhecem a sua experiência quotidiana no texto de Hanlon, se o livro nomeia e organiza aquilo que vivem de forma difusa, então o conhecimento foi apropriado – e, portanto, validado pela práxis. Um verdadeiro educador, comprometido com a pedagogia libertadora, compreende que a sua função não é a de certificar ou de desqualificar saberes segundo hierarquias epistemológicas coloniais – essas coisas do método, racionalismos e etc –, mas a de facilitar o diálogo entre diferentes formas de conhecimento, reconhecendo que cada uma emerge de (e responde a) contextos específicos.
Macamo, ao contrário, insurge-se, muito suspeitamente, como o fiscal epistemológico que determina, unilateralmente, os critérios de legitimidade do conhecimento ou da informação partilhada por Hanlon, sem jamais partir do universo vocabular e das condições materiais de existência daqueles sobre quem este último escreve ou para quem deveria escrever. A sua insistência em “mecanismos analíticos” e “inferências demonstradas” ignora que o conhecimento nasce da experiência vivida das pessoas, não da observação metodológica externa – excessivamente teórica e retórica – de sociólogos. Nesse desiderato, o papel de jornalistas como Joseph Hanlon é precisamente o de actuar como codificadores e sistematizadores das experiências vividas pelas massas populares, transformando a consciência difusa da opressão em narrativas acessíveis que nomeiam, organizam e devolvem ao povo a sua própria compreensão da realidade de forma ampliada e partilhável. Hanlon não precisa de satisfazer os critérios metodológicos da academia europeia porque a sua legitimidade vem de outra fonte: a capacidade de dialogar com as comunidades afectadas, de documentar as suas denúncias, de dar visibilidade (nacional e internacional) às suas lutas e de fornecer instrumentos – dados, conexões, padrões – que fortalecem a consciencialização colectiva e a mobilização política.
Por outra, quando documenta a devastação do meio ambiente em Cabo Delgado ou os esquemas de corrupção envolvendo o FMI, Hanlon não está a impor uma análise externa sobre sujeitos passivos incapazes de compreender a sua própria realidade; está, sim, a amplificar vozes silenciadas, a conectar experiências locais fragmentadas num quadro compreensivo mais amplo, e a devolver aos seus leitores (o povo moçambicano) as ferramentas simbólicas para identificar a sua recolonização; um acto de nomeação colectiva que é, ele próprio, o primeiro passo para a sua libertação. O jornalismo comprometido, tal como a educação libertadora, não é a mera transmissão unilateral de conhecimento superior, mas a mediação dialógica que parte do saber popular, honra-o, sistematiza-o e devolve-o enriquecido, sempre a serviço da práxis transformadora das comunidades oprimidas, nunca da vaidade metodológica de alguma elite intelectual que confunde rigor académico com compromisso ético-político com os despossuídos.
Macamo insiste que o “rigor é a ética do pensamento”, apresentando o método académico como neutro e objectivo. Novamente recuperando Paulo Freire, não existe neutralidade na educação ou na produção de conhecimento. Quando Macamo exige que se demonstre “mecanismos analíticos” antes de se afirmar que Moçambique foi recolonizado pela corrupção, ele ignora que as pessoas comuns já vivem e compreendem essa recolonização nos seus corpos, nas suas comunidades destruídas pela exploração extractivista, ou nas suas vidas precarizadas. O oprimido não precisa que o intelectual lhe explique a sua opressão através de metodologias sofisticadas. O oprimido já sabe que tem sido sistematicamente oprimido. O que Macamo chama de “constatação moral” é, na verdade, consciência da realidade vivida – o primeiro passo para a práxis transformadora. Ao desqualificar essa consciência como “não-analítica”, Macamo perpetua a colonização intelectual: só o colonizador pode nomear legitimamente a colonização. Só o sociólogo pode compreender a opressão do povo.
Outra insistência de Macamo é a separação artificial entre a denúncia moral e a análise rigorosa, sugerindo que a primeira é inferior, emocional, “apenas slogan”. Oblitera, nesse esforço, o facto de que não há transformação social sem a denúncia apaixonada da injustiça, e essa denúncia já contém em si uma análise – nascida da experiência concreta de quem sofre a opressão ou de quem a dissemina, jornalisticamente. Nesse contexto, quando Joseph Hanlon afirma que Moçambique foi recolonizado através da corrupção, ele está a fazer muito mais do que constatar: está a nomear um processo histórico a partir de evidências documentadas. Exigir que ele demonstre cada “mecanismo analítico” antes de legitimar a sua tese é uma táctica subtil de silenciamento.
A dado momento das suas teses, Macamo celebra o método como “responsabilidade pública” e “pedagogia da dúvida”. Nesse sentido, ele oculta uma questão fundamental: de que método está a falar? O método positivista euro-centrado que exige que realidades africanas sejam dissecadas através de categorias analíticas exógenas, num exercício de violência epistémica que replica, no plano do conhecimento, a mesma lógica colonial que tanto critica nos seus textos e livros quando fala de África e de Moçambique? Eu penso que uma metodologia autêntica parte sempre do universo cultural e das condições materiais concretas dos sujeitos investigados – não se impõe de fora para dentro. Tanto os jornalistas como as pessoas que vivenciam diariamente a corrupção sistémica, que assistem ao desmantelamento do Estado e das suas políticas sociais enquanto as elites se enriquecem, que sofrem a recolonização nos seus corpos e comunidades, etc etc, não carecem de um doutoramento em sociologia para compreender a sua própria opressão: elas a compreendem visceralmente, com uma densidade experiencial que nenhuma observação académica distanciada pode rivalizar.
Ademais, o verdadeiro método científico comprometido com a transformação social não desqualifica uma produção jornalística rotulando-o de “mera constatação” ou “puro slogan”; ao contrário, parte do conhecimento popular, dialoga horizontalmente com ele, aprende com os seus saberes e discursos, e colabora na sua sistematização colectiva – não para validá-lo segundo critérios académicos externos, mas para potencializá-lo como instrumento de conscienlizazação e luta. Macamo, ao erguer-se como guardião metodológico que determina o que conta ou não como conhecimento legítimo, revela-se não como cientista social comprometido com a disseminação de informação e a emancipação popular, mas como um intelectual orgânico de uma ordem a quem interessa manter as massas epistemicamente subordinadas, incapazes de nomear autonomamente a sua própria realidade, eternamente dependentes da mediação certificadora de elites académicas que falam sobre elas, e nunca com elas.
Por fim, Macamo afirma que, como professor, se as pessoas não o entendem, “o problema começa em mim”. Mas os seus textos contradizem essa suposta humildade. Diferentemente de Hanlon, ele escreve em linguagem academicamente hermética, repleta de referências a debates metodológicos inacessíveis à maioria dos moçambicanos. Manter o conhecimento codificado em linguagem inacessível garante que apenas a elite escolarizada possa participar do debate público pretensamente legítimo. Não seria o Macamo nada mais do que um dos mais proeminentes guardiões do capital simbólico, garantindo que as massas permaneçam excluídas da produção ou da aquisição de conhecimento sobre a sua própria realidade?
Com efeito, em nenhum momento das suas elucubrações Macamo menciona ou dialoga com as comunidades afectadas pela corrupção, pela recolonização e pela captura do Estado. A sua “análise” ocorre sempre sobre o povo, nunca com o povo. Em quê é que isso seria analiticamente superior ao conhecimento que Hanlon produziu articulando com as próprias comunidades? Ao desqualificar a forma jornalística de compreensão e disseminação da realidade, Macamo pretende paralisar a acção transformadora exigindo que, antes de agir, as pessoas comprovem as suas análises segundo critérios que nunca podem dominar plenamente. É a paralisia pela análise infinita. Essa é a última coisa que Moçambique precisa, neste momento da sua história. Reflexão sem acção é verbalismo estéril. Quando o povo diz “estamos a ser recolonizados”, Macamo responde: “provem o mecanismo analítico que vos fez chegar a essa conclusão”. Quando o povo diz “a corrupção está a nos destruir”, Macamo replica: “isso é apenas constatação moral”. Essa postura não é neutralidade científica, é cumplicidade com o sistema que oprime.
Moçambique não precisa de mais gatekeepers intelectuais a policiar quem pode ou não produzir informação ou conhecimento legítimo sobre o país. Precisa de mais Joseph Hanlons que, ao documentar a recolonização através da corrupção, dá voz aos silenciados, nomeia as estruturas de opressão e fornece instrumentos para a consciencialização colectiva. Não importa se cada inferência foi “metodologicamente demonstrada” segundo padrões macamianos; importa mais se o livro de Hanlon contribui para que o povo compreenda e transforme a sua realidade. Essa transformação não se conquista com rigor metodológico abstracto, mas com práxis colectiva, aquela permanente leitura das massas sobre o seu mundo, em livros como o de Hanlon, para depois transformá-lo. Afinal, a informação e o conhecimento que liberta não é (e nunca foi) propriedade privada da academia. Ou da sociologia.
