Opiniao

Em homenagem a todos — nomeados ou anônimos — que, com coragem e sensibilidade, escrevem sobre a tragédia de Cabo Delgado, transformando a dor em resistência e a palavra em trincheira contra o silêncio

Tiago J.B. Paqueliua
Tiago J.B. Paqueliua

Por Tiago J.B. Paqueliua

Neste Moçambique onde a verdade corre risco de censura, e a dor é diariamente reciclada em silêncio, ainda há quem escreva. Escreve com indignação, com ética, com esperança ferida — sobre Cabo Delgado, terra que sangra e grita. Esta é uma homenagem àqueles que escrevem não para agradar, mas para despertar. Não por profissão, mas por missão.

Há dores que se calam, e há dores que, mesmo sufocadas, encontram um caminho para escrever-se — com sangue, com lágrimas, com indignação. A tragédia de Cabo Delgado, já há muito desdobrada em capítulos de guerra, deslocamento e silêncio institucional, transformou-se numa ferida aberta no corpo da nação. E é sobre essa ferida que homens e mulheres — conhecidos ou anônimos — escrevem. Não por vaidade, mas por dever. Não por glória, mas por justiça.

Em cada parágrafo desses escritos insurgentes, há o pulsar de uma consciência que se recusa a ser anestesiada. Eles não escrevem do conforto da neutralidade, mas da borda do abismo, onde o grito dos que perderam tudo ainda ecoa entre os escombros da propaganda estatal. Escrevem como quem sopra cinzas para reacender brasas. Como quem junta palavras para que o país junte os seus cacos.

Há nesta escrita uma gramática diferente — feita de verbo que não tolera passividade, de sujeito coletivo, de adjetivos que não suavizam a dor, mas a tornam incontornável. É uma gramática de urgência. De resistência. De lucidez. E quem se atreve a redigi-la, mesmo com dedos tremendo de medo ou cansaço, participa do milagre da memória coletiva, que se recusa a esquecer as vítimas de Palma, Mocímboa da Praia, Ibo, Muidumbe, Macomia e tantas outras geografias estraçalhadas pelo esquecimento cúmplice.

Na pena desses escritores, jornalistas, poetas e cronistas, a palavra se converte em abrigo, em denúncia, em semente. Porque quando a violência é institucionalizada e a mentira promovida à doutrina de Estado, cada texto é uma trincheira, cada denúncia é um facho de luz nas trevas do conformismo.

Há textos que são como cartas lançadas ao mar da consciência pública. Muitos serão ignorados, mas alguns tocarão o coração de quem ainda crê que Moçambique não precisa ser um cemitério de esperanças. Outros textos são como pedras contundentes lançadas contra os vidros blindados da hipocrisia oficial. Não quebram de imediato, mas trincam a fachada do cinismo.

Não é apenas jornalismo. Não é apenas literatura. É um gesto de resistência ética e cidadã conscientemente ativa. É a tentativa obstinada de preservar a verdade num contexto de naufrágio moral de uma elite que prefere a paz do mercado à justiça dos povos.

É por isso que não cabem nomes nesta homenagem. Pois os melhores talvez estejam ainda anônimos — escrevendo de becos, periferias, rádios comunitárias esquecidas, páginas de redes sociais que o algoritmo ignora, ou até de cadernos que nunca chegarão à imprensa. E mesmo assim, suas palavras são centelhas de lucidez num tempo de sombras.

Alguns dirão que não vale a pena. Que é perigoso, que é inútil, que nada muda. Mas eles seguem. Porque sabem que o silêncio não redime, apenas prolonga o horror. Sabem que escrever é um modo de não permitir que a injustiça se normalize.

E mesmo que as páginas se rasguem, mesmo que a censura se intensifique, mesmo que a morte ronde, a palavra continuará a nascer. Como erva que brota entre rachaduras do soalho cimentado. Como poesia insubmissa, bem teimosa que nenhuma bala pode calar.

Cabo Delgado ainda sangra. Mas enquanto houver quem escreva com o sangue dos outros no coração e com o suor da coragem na testa, a dor encontrará linguagem. E a linguagem encontrará caminho. E o caminho — por mais longo e tortuoso que seja — conduzirá à justiça.

A última palavra ainda não foi escrita.

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