Sociedade

Bochechas Gordas e Barrigas Vazias: Por que o Capital Social é Essencial na Luta contra a Insegurança Alimentar em Moçambique

 

Por  Nehemias Lasse e Jerry Maquenzi

Há dias, o Presidente Daniel Chapo, em visita à província de Gaza, fez um comentário que gerou reacções diversas: afirmou que as pessoas tinham “bochechas gordas”, o que indicaria que estavam em segurança alimentar. Mais tarde, disse que estava apenas a brincar. Mesmo assim, a frase não passou despercebida – e nem deveria. Quando dita por uma figura pública de alto nível, mesmo numa “brincadeira” carrega implicações simbólicas e revela algo sobre o modo como os problemas sociais são percebidos (ou subestimados) pelas lideranças.

Num país onde milhões enfrentam dificuldades diárias para garantir uma refeição digna, associar segurança alimentar à aparência física, ainda que em tom descontraído, não deixa de ser problemático. Mais do que uma questão de sensibilidade, é um alerta: há uma urgência em levar o tema da insegurança alimentar com a seriedade e a profundidade que ele exige.

Segurança alimentar não se vê no espelho

A insegurança alimentar não se mede por bochechas, sorrisos ou barrigas. Mede-se pela regularidade, qualidade e dignidade no acesso aos alimentos. Uma pessoa pode parecer saudável e, ainda assim, viver numa situação de vulnerabilidade alimentar, dependendo de doações, de colheitas instáveis ou de redes frágeis de apoio familiar. Há também o fenómeno conhecido como “fome oculta”: dietas pobres em nutrientes essenciais, mas com excesso de calorias, que geram corpos aparentemente robustos, mas biologicamente subnutridos.

Além disso, quando se usa um exemplo superficial para ilustrar uma realidade tão estrutural, corre-se o risco de invisibilizar os milhares que continuam sem acesso garantido à alimentação – principalmente nas zonas rurais, onde a insegurança alimentar se disfarça entre silêncios e sobrevivência forçada.

O papel invisível do capital social

A nível nacional, a insegurança alimentar tem sido relatada principalmente nas zonas rurais, entretanto, historicamente, dentre várias estratégias de sobrevivência, destacava-se o apoio familiar, entre amigos e vizinhos, um verdadeiro capital social fortalecido (espírito de viver em comunidade). Entretanto, devido a vários factores, como é o caso do aumento das desigualdades regionais, choques climáticos, conflitos armados e dependência da agricultura de subsistência, tem se observado um enfraquecimento do capital social genuíno, resultando portanto no agravamento da insegurança alimentar, que por si só se torna dependente de políticas públicas (donativos governamentais e não governamentais),de boas colheitas individuais, assim como do aumento de rendimento das fontes alternativas, para posterior compra de alimentos.,

O Capital social são os laços de confiança, solidariedade e cooperação entre membros de uma comunidade. Em muitos contextos moçambicanos, onde o Estado falha ou demora a chegar, é o apoio mútuo entre vizinhos, parentes e associações locais que assegura o mínimo para viver: uma partilha de sementes, um empréstimo informal, um grupo de poupança, uma área comunitária. Onde há redes sociais fortes, há mais resiliência frente às crises alimentares, daí que surge a questão seguinte.

O que está a corroer essas redes?

Infelizmente, o capital social tem sido corroído por diversos factores: migração forçada, conflitos armados (como no norte de Moçambique), perda de terras para grandes empreendimentos, e programas de assistência mal desenhados que geram desconfiança ou competição entre os mais pobres. Em muitos casos, políticas de “desenvolvimento” impõem modelos empresariais que ignoram as formas locais de organização social, fragmentando comunidades e rompendo com práticas tradicionais de solidariedade.

Adicionalmente, na tentativa de garantia de “posições governamentais”, ilustração de trabalho localmente bem feito, tem surgido um movimento de mobilização de donativos (agropecuários) a favor dos governantes com poder de decisão a nível provincial assim como nacional. Estes donativos, infelizmente são oferecidos aos governantes de maior escalão em nome da comunidade, reflectindo assim um falso cenário de maior produtividade agropecuária. Esta propaganda enganosa, levanta questionamentos sobre os interesses dos líderes governamentais locais. Ademais, este cenário (tal como observado na província de Gaza), ilustra o enfraquecimento do capital social naquela região, isto é, num contexto em que maior parte da população encontra-se em situação de insegurança alimentar (in: Lasse e Abbas, 2025), ainda surgem donativos excessivos ao Presidente da República em nome das comunidades.

Portanto, neste cenário, não é incomum encontrar pessoas que hoje aparentam estar “bem”, mas que estão apenas a lidar com a insegurança alimentar de forma silenciosa – porque suas redes de apoio estão fragilizadas, e o Estado continua distante.

O que deve ser feito?

Se a meta é segurança alimentar real e duradoura, é essencial investir no fortalecimento do capital social. Isso implica:

  • Reconhecer e valorizar as formas locais de organização comunitária, como comités locais e associações de agricultores;
  • Apoiar iniciativas de produção comunitária, bancos de sementes e mercados solidários;
  • Investir na juventude e nas mulheres rurais, que são frequentemente pilares da segurança alimentar, mas excluídos das decisões políticas e dos apoios públicos;
  • Descentralizar políticas públicas e envolver as comunidades na sua concepção e implementação, respeitando seus ritmos, saberes e prioridades.

Conclusão: não é brincadeira

Ainda que o Presidente tenha dito estar a brincar, o tema não é – e não pode ser – tratado como tal. Em tempos de desigualdade crescente, crise climática e migração rural-urbana, brincar com a fome é uma afronta à dignidade de milhões de moçambicanos.

Mais do que bochechas gordas, o país precisa de comunidades fortalecidas. Mais do que discursos fáceis, é preciso construir soluções reais, enraizadas nos territórios e nos laços sociais que sustentam a vida no campo. O capital social pode não ser visível como o rosto de alguém, mas é nele que reside a verdadeira segurança alimentar de Moçambique.

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