Sociedade

Quando a Pátria Transforma Homens em Lixo: Cabo Delgado e o Martírio da Palavra Silenciada

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

 

I. Introdução: De Palavras Torturadas e Corpos Silenciados

 

A Deutsche Welle, denuncia mais um acto ignominioso: dezasseis jornalistas moçambicanos foram vítimas de tortura psicológica, intimidação e confisco ilegal de equipamento por parte das Forças de Defesa e Segurança (FDS), no distrito de Macomia, em Cabo Delgado. Com autorização oficial para documentar as ruínas deixadas pelo terrorismo, foram interceptados, perseguidos, ameaçados e humilhados – num ritual de vergonha orquestrado pelas próprias instituições que deveriam garantir o exercício da liberdade.

Neste cenário, emerge uma interrogação lancinante, não apenas política ou jurídica, mas profundamente teológica e existencial:

Cabo Delgado é lixeira também de homens?

Essa pergunta — balbúcio de uma alma escandalizada — brota das barbáries visíveis e invisíveis que caracterizam a província desde 2017, quando, aproveitando-se da fratura histórica, do narcisismo institucional, da estratificação social e do desprezo sistémico pela dignidade local, barbudos asiáticos desembarcaram em Mocímboa da Praia com a sua doutrina macabra. Está, longe de ser fenômeno isolado, somou-se aos males preexistentes e tornou-se uma simbiose de terrores: saque dos recursos, tráfico de órgãos, desaparecimentos forçados, torturas, execuções extrajudiciais e a humilhação constante dos que sabem, veem, ou ousam falar de mais.

II. Da Lixeira de Hulene à Lixeira Humana de Cabo Delgado

Há quem ainda recorde a tragédia da Lixeira de Hulene, quando o monte de lixo desabou sobre os míseros abrigos de plebeus suburbanizados da capital, soterrando corpos, vidas e futuros. Não foi desgraça fortuita, mas crime político e moral: os alertas existiam, os riscos eram conhecidos, mas o sistema — como sempre — escolheu ignorar. O dedo aponta, então, para aqueles que se alimentam do sofrimento alheio e que, de forma obstinada, não se dão ao trabalho de prevenir, muito menos de mitigar.

Em Cabo Delgado, o paralelo é dolorosamente real, ainda que com uma diferença sinistra: aqui, o lixo não são resíduos sólidos — o lixo é gente. Governamentalmente descartada. Escória amontoada. Povo invisibilizado diante do olhar cínico e o silêncio apático dos que fingem representar o bem. Que civilização é essa, onde o Estado empurra os cidadãos para a vala comum da insignificância?

III. Omissão e o Inferno Contemporâneo

Agostinho de Hipona afirmou que um império sem justiça é apenas uma grande quadrilha armada. E em Cabo Delgado, essa quadrilha não se limita aos terroristas com fuzis, mas abrange os burocratas com pastas, os capatazes com farda e os académicos com a consciência vendida. A dor dos inocentes grita mais alto que qualquer hino pátrio.

Martinho Lutero, ao combater o silêncio cúmplice da Igreja, sabia que a neutralidade em face do mal é, em si, uma forma de mal. Assim também, os líderes religiosos, jornalistas cooptados, a oposição complacente e a “sociedade civil” de gravata e cartão de visita revelam-se, não como aliados do povo, mas como fantoches domesticados pelo medo, estão prenhes de cagufa de serem também convertidos em lixo. Com razão: o recluso conhece o seu carceireiro.

A lição de Gordon Haddon Clark também aqui se confirma: quando se desmorona a epistemologia da verdade, sobra apenas a propaganda e a manipulação. Moçambique já não é governado por ideias, mas por slogans — e slogans não salvam, apenas silenciam.

IV. O Martírio da Palavra: Jornalistas como Cordeiros Mudos

Reiteremos, pois não se pode esquecer:

Em 3 de Março de 2015, Gilles Cistac foi assassinado por propor legalidade dentro do Estado.

Em 16 de Maio de 2016, José Jaime Macuane foi alvejado com quatro tiros nas pernas, como quem castiga o pensamento.

Estácio Valoi, jornalista e investigador, foi espancado e perseguido por contar verdades inconvenientes.

Em 7 de Abril de 2020, Ibrahimo Mbaruco, jornalista comunitário, desapareceu em Palma sem rasto nem justiça.

Em 7 de Janeiro de 2023, Arlindo Chissale também desapareceu, deixando apenas silêncio no lugar da denúncia.

Agora, em 2025, 16 jornalistas são torturados psicologicamente por tentar mostrar o que ainda resta de ruínas e dignidade.

Enquanto isso, os bons calam-se. A vergonha nacional não é apenas o que se faz em Cabo Delgado, mas o que se permite — e o que se ignora.

V. Somos uma República Sem República

Dizem que o administrador de Macomia autorizou as filmagens. Como se tal coisa significasse algo num território onde o poder reside nos caprichos dos fardados, muitos deles à paisana. Temos aí a mais pura Demonstração da Qualidade da Independência de Moçambique.

Quando os jornalistas são interceptados, forçados a sair da viatura, alinhados como bois no curral da vergonha, fotografados sem mandato, interrogados sem razão, torturados psicologicamente sem acusação — a república mostra sua verdadeira face: um cabaré mal ensaiado onde o Estado representa a lei e o povo, o palhaço espancado.

E perguntamos novamente:

Cabo Delgado é lixeira também de homens?

Ou será, com escárnio, cemitério de consciências, mercado de órgãos, pátio de treino para torturadores, santuário do silêncio institucional?

VI. Conclusão: O Grito dos Maus e o Silêncio dos Bons

Martin Luther King Jr. avisou: “O que mais me assusta não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.” E em Moçambique, o que temos é o silêncio dos bons, dos justos, dos pensadores, dos professores, dos religiosos, dos jornalistas com crachás do regime, dos políticos de oposição que medem palavras para não perder migalhas, dos académicos travestidos de humanos — todos com medo de virar lixo.

Mas a verdade é simples e nua: o povo de Cabo Delgado já é tratado como lixo.
E não há recolha seletiva.
Não há reciclagem de esperança.
Apenas o adubo humano de um Estado podre, plantando miséria para colher poder.

Fontes:

1. Fonte principal: DW, “MISA-Moçambique denuncia tortura e intimidação de jornalistas em Cabo Delgado”, 6 de Julho de 2025.

2. Arquivos DW, Canal de Moçambique, CIP, Savana, STV, Carta de Moçambique.

3. Inspiração do autor nos pensamentos de Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, Turretini, Gordon Clark e Martin Luther King Jr.

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