Por Tiago J.B. Paqueliua
Com base no Diário da Zambézia
Mocuba, a segunda cidade mais populosa da província da Zambézia, foi palco de mais um episódio insólito e preocupante: a máquina de hemograma, equipamento vital para os serviços laboratoriais do Hospital Distrital local, foi roubada em plena luz do dia. A notícia foi avançada na manhã de segunda-feira, 21 de Julho de 2025, pelo jornal Diário da Zambézia.
Este acto criminoso vem agravar ainda mais o já crítico estado da saúde pública no país. A máquina de hemograma permite a detecção precoce de infecções, anemia, leucemia e outras doenças graves. A sua ausência compromete directamente o diagnóstico e o tratamento de centenas de pacientes, especialmente os economicamente desfavorecidos, para quem o sistema de saúde público é a única alternativa.
Comentário
O roubo ocorre num contexto de escassez generalizada nos hospitais moçambicanos: faltam vacinas infantis, medicamentos essenciais, seringas, reagentes, algodão e até ligaduras — paradoxalmente, num país que se orgulha de produzir e exportar algodão. Esta ausência de insumos básicos compromete a segurança sanitária nacional, agravada ainda mais pelo recente surto de Varíola dos Macacos, que já ultrapassa os 11 casos confirmados.
Em Cabo Delgado, organizações não-governamentais denunciam bloqueios terroristas que dificultam o envio de ajuda humanitária e a prestação de cuidados médicos às populações deslocadas. A situação é dramatizada por uma crise logística: o Estado tem respondido com soluções paliativas, como o uso de tratores agrícolas — originalmente destinados ao trabalho no campo — para o transporte de pessoas em carroçarias improvisadas e cobertas, uma prática que viola os mais básicos princípios da dignidade humana e da segurança rodoviária.
A presente situação exige uma reflexão ética, teológica, política, filosófica, pedagógica e cidadã. Comecemos com Santo Agostinho, para quem “a ordem justa é a paz”. O caos na saúde pública moçambicana revela a ausência de justiça social e de uma ordem ética minimamente estruturada. Tomás de Aquino, ao falar da função do Estado como ordenadora do bem comum, recordaria que um governo que permite o roubo de equipamentos hospitalares cruciais, ou o transporte de pessoas em tratores, deixa de exercer autoridade legítima.
João Calvino, defensor da moralidade pública e da vigilância sobre os governantes, chamaria o povo a resistir e denunciar o desleixo como forma de preservar a honra divina reflectida na dignidade humana. E Francisco de Assis, que viveu em radical simplicidade junto dos pobres, não hesitaria em clamar pela restauração da fraternidade entre governantes e governados, apelando a uma ética do cuidado.
Madre Teresa de Calcutá diria que “quem não serve para servir, não serve para governar”. Sua voz seria um grito manso contra a indiferença de quem detém o poder. Já Amílcar Cabral – recordado aqui por Bembe – afirmaria que é preciso “dizer sempre a verdade ao povo”, sobretudo quando este é sacrificado em nome de interesses obscuros.
Paulo Freire enfatizaria a pedagogia da indignação e da acção. O povo precisa não apenas de denunciar, mas de se organizar e agir, aprendendo politicamente com cada injustiça. E Boaventura de Sousa Santos traria à baila o conceito de “epistemologias do Sul”, exigindo que as soluções para Moçambique partam das comunidades, não de receitas de cima para baixo.
Nelson Mandela, eterno defensor da reconciliação sem complacência, afirmaria que “não há liberdade sem dignidade” – e a saúde é um direito sem o qual a liberdade se torna mera abstração.
Gilles Cistac, constitucionalista que pagou com a vida por sua ousadia em denunciar o desvio da legalidade, seria veemente: a negligência do Estado é inconstitucional e fere os fundamentos da República.
Fátima Mimbirre, jurista e activista, levantaria o dedo contra a captura do Estado por interesses mafiosos, questionando como desaparece um equipamento hospitalar debaixo do olhar cúmplice ou distraído da administração.
Estácio Valoi, jornalista de investigação, provavelmente indagaria: quem lucra com o caos hospitalar? Que redes de corrupção estão por trás de desaparecimentos “misteriosos” como este?
Jaime Macuane, politólogo, situaria este episódio no quadro de um Estado desgovernado, onde políticas públicas são substituídas por improvisações autoritárias e ineficazes.
Quitéria Guirringane, jovem activista política, clamaria por responsabilidade social, por uma juventude indignada mas mobilizada, disposta a exigir a devolução do país aos seus legítimos donos: os cidadãos.
Finalmente, Josué Bila, teólogo, antropólogo e jornalista, talvez escrevesse que a máquina roubada não é apenas um bem material: é símbolo de um país saqueado, amputado da sua própria capacidade de se curar.
Nota Editorial Final
O roubo da máquina de hemograma em Mocuba não é apenas um crime de oportunidade: é um espelho da desorganização institucional, da banalização do sofrimento dos pobres e da falência de um projecto nacional. Resta perguntar: até quando? E quem responde?
