Opiniao

A Corrupção em Moçambique: Um Problema Histórico Muito Antes de Samora Machel

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

Torna-se pensável apresentar uma leitura crítica e desromantizada da corrupção em Moçambique, demonstrando que se trata de um fenómeno estrutural, anterior à independência, à governação de Samora Machel e à abertura económica da década de 1990.

Ao invés de se fixar em culpabilizações parciais ou saudosistas, o correcto consiste em traçar as raízes históricas da corrupção desde as formações políticas pré-coloniais até à contemporaneidade, concluiremos que apenas uma ruptura sistémica e ética, poderá satisfazer a exigência de uma governação centrada na justiça e no bem comum.

Há uma tendência recorrente nos discursos políticos e sociais em Moçambique, de atribuir o início da corrupção generalizada à morte de Samora Moisés Machel ou à abertura económica dos anos 1990. Esta narrativa, além de simplista, ignora evidências históricas de que a corrupção é um problema estrutural, profundamente enraizado, que antecede a independência, a existência do Estado moçambicano e até mesmo a chegada dos portugueses ao território.

Se nos mergulhamos na leitura crítica e desmitificadora da história política moçambicana, saberemos que a corrupção, como prática política e administrativa, atravessa as várias fases do desenvolvimento histórico do país — desde as chefaturas pré-coloniais até ao atual Estado multipartidário. É o objeto desta modesta intervenção.

1. Corrupção nas estruturas pré-coloniais

Muito antes da chegada dos colonizadores europeus, o território que hoje constitui Moçambique era ocupado por diversas formações políticas — reinos, chefaturas e linhagens — onde já se praticavam formas sofisticadas de dominação e acumulação de riqueza. Muitas dessas estruturas assentavam-se na exploração de pessoas, tráfico de escravos, extorsão de tributos e manipulação do poder espiritual e militar.

Um exemplo emblemático é o de Gungunhane, último imperador de Gaza, que, segundo relatos históricos, terá subornado um comandante português após este ter capturado um lote de armas no rio Mezinchopes. Tal ato mostra que, mesmo antes da colonização formal, já se compreendia e instrumentalizava a corrupção como ferramenta de poder. Ela não era percebida como transgressão, mas como técnica legítima de sobrevivência e domínio político, num ambiente em que o poder se confundia com a pessoa do governante.

2. Corrupção no sistema colonial

Com a consolidação do domínio português, a corrupção passou a integrar-se à lógica administrativa do colonialismo. A missão do Estado colonial era a de extrair, explorar e submeter — não a de servir com ética ou equidade. O aparelho colonial era profundamente hierárquico, arbitrário e seletivo, favorecendo os colonos e os assimilados, enquanto explorava as populações indígenas.

Práticas corruptas tornaram-se institucionais. No sector da educação, por exemplo, popularizou-se o costume da “pisadela”, isto é, o pagamento informal aos professores para garantir a transição dos alunos. No sector da saúde, era frequente a oferta de um galo, dinheiro ou outros bens às parteiras tradicionais ou enfermeiras para garantir tratamento preferencial. No sistema de justiça e na administração local, subornos eram uma norma tácita. A corrupção estava, portanto, normalizada como forma de acesso e mobilidade dentro de uma estrutura profundamente desigual.

3. Corrupção sob a governação de Samora Machel

O período pós-independência, liderado por Samora Machel (1975–1986), marcou-se por um discurso revolucionário, moralista e anti-burgusia. No entanto, apesar da retórica ética, o sistema governativo manteve práticas de favorecimento e impunidade, especialmente entre os quadros superiores da FRELIMO. Samora falava contra os “aproveitadores”, mas raramente punia de forma exemplar os corruptos do topo da hierarquia.

Casos como os de Alcides Chivite, Constantino, Ernesto Trinta e Francisco Chicuara Massinga evidenciam que, quando houve punição, ela se deveu mais a suspeitas de ligações externas (com a CIA) do que a crimes de corrupção interna. O governador Sitole, acusado de corrupção, foi apenas rebaixado, mantendo-se nos anais do partido como figura de prestígio. Os atos corruptos de Jossias Dlakhama da Direção Técnica de Autos e Blindados, não foram punidos, mas apenas sua suposta colaboração com o apartheid no bombardeamento à cidade da Matola.

Durante a Operação Produção, concebida para combater o “parasitismo urbano”, os secretários dos grupos dinamizadores exigiam subornos para evitar que cidadãos fossem deportados à força para o Niassa. Algo semelhante ocorria no recrutamento militar: oficiais recebiam pagamentos para excluir nomes das listas ou garantir melhor enquadramento. Mesmo acontecia no seio das das Forças Armadas Populares de Libertação de Moçambique (FPLM), para progressão na carreira.

Foi durante a governação de Samora Machel que dns Forças Armadas surgiu o termo “Gondo Kudgera” que salvo melhor interpretação significa “Comer à Custa da Guerra”. Sem precisarmos de explicação clínica, dá para se perceber que o conflito bélico FRELIMO-RENAMO foi fonte de lucro para uns, e de sofrimento para outros.Tudo isto demonstra que o ideal revolucionário Moçambique não foi suficiente para combater os vícios herdados e os criados internamente.

4. A corrupção no período de transição para o multipartidarismo

A transição para a democracia liberal na década de 1990, com a implementação do multipartidarismo e da economia livre de mercado, criou um novo contexto para a corrupção. A promessa de pluralismo e concorrência deu lugar à captura do Estado por elites políticas, que manipularam os processos de privatização para seu próprio enriquecimento. Deu-se a oficialização do saque ao erário público: o cofre foi drenado para capitalizar a cúpula cimeira da FRELIMO, que passou a constituir a casta dos capitalistas moçambicanos, hoje em ascensão ininterrupta. Também Afonso Dlakhama e Raúl Domingos foram contemplados.

Fundos de doadores internacionais, destinados à reconstrução pós-guerra, foram frequentemente desviados. O Estado tornou-se um espaço de redistribuição de privilégios entre antigos combatentes, membros da elite política e seus familiares.

A corrupção deixou de ser apenas prática oculta: tornou-se uma ferramenta sistemática de acumulação e manutenção de poder, consolidando redes de clientelismo político que substituíram qualquer ética pública republicana. A ausência de memória crítica sobre os mecanismos históricos da corrupção permitiu que os erros se repetissem com maior sofisticação, e até penetrassem nos meandros da religião também.

5. O ciclo contínuo de impunidade no presente

A situação atual, com escândalos como o das dívidas ocultas, do Sustenta, entre outros, uns mais bizarros que outros, apenas confirma o aprofundamento da cultura de impunidade. A participação de figuras do mais alto escalão do Estado, incluindo antigos presidentes, ministros e diretores de empresas públicas, mostra que a corrupção já não se limita à margem do sistema — ela habita o centro das instituições.

Ao invés de corrigir o passado, o presente repete-o com maior audácia. A corrupção é muitas vezes tratada como “normal” ou como mal necessário. Pior: é defendida por narrativas de conveniência que culpam apenas os líderes atuais, esquecendo que todos os presidentes — sem exceção — presidiram sistemas marcados por escândalos, favorecimentos e opacidades. O que se alterou foi apenas a visibilidade e o volume da crítica pública.

A única diferença entre ontem e hoje é que agora o número de críticos aumentou, e proporcionalmente o número de corruptos aumentou também.

O país nunca puniu exemplarmente os grandes corruptos. Nem Samora o fez. A mitificação da sua figura não pode continuar a servir como obstáculo à verdade histórica.

Conclusão

Aprendamos a romper com um passado que nunca passou: A corrupção em Moçambique não é fruto de um evento isolado, nem de um único governo, nem da abertura económica, nem da globalização. Ela é estrutural, culturalmente tolerada e historicamente cultivada. Para superá-la, é preciso mais do que substituir líderes ou prometer “governação transparente”.

É preciso revisitar criticamente o passado, não com espírito de revanche, mas com desejo de verdade.

Romper com a corrupção exige uma ruptura cultural: repensar a função do Estado, a ética da liderança, a estrutura das instituições e, sobretudo, a cidadania ativa.

Enquanto o passado for manipulado em função de mitos, da iliteracia e das conveniências partidárias, o futuro será apenas uma repetição mais disfarçada do que já foi o lagareiro está sendo o presente. A memória histórica deve ser instrumento de emancipação, não de encobrimento.

É hora de deixar de branquear figuras e assumir, com coragem, que a construção de uma república ética exige enfrentar aguerridamente os fantasmas da nossa própria história.

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