O impacto das privatizações na economia moçambicana tem sido um tema central na análise de diversos estudiosos que investigam a transição do socialismo revolucionário para um modelo de economia de mercado. Entre esses investigadores, Jessica Falconi, do Centro de Estudos Africanos e de Desenvolvimento da Universidade de Lisboa, destaca-se pela sua abordagem interdisciplinar, na qual examina a intersecção entre economia, política e literatura, tal como publicado no portal The Conversation.
Através da sua investigação, Falconi argumenta que a literatura moçambicana não se limita a documentar factos históricos e económicos, mas também interpreta e questiona os efeitos das reformas económicas, oferecendo um olhar mais profundo sobre a relação entre privatizações e desigualdade social. “A ficção capta os desafios da construção nacional num contexto de profundas transformações económicas e políticas”, explica a investigadora, sublinhando que a literatura moçambicana fornece uma leitura alternativa das grandes mudanças estruturais do País.
A transição do socialismo para o neoliberalismo e os desafios estruturais
Após a independência em 1975, Moçambique adoptou um modelo económico socialista, baseado na nacionalização dos sectores estratégicos e num papel central do Estado na economia. No entanto, como aponta Falconi, “a guerra civil, que durou de 1977 a 1992, deixou o País numa situação económica frágil, forçando a adesão a políticas de ajustamento estrutural impostas pelo Banco Mundial e pelo FMI”. Esse processo acelerou as privatizações e resultou numa concentração de riqueza, num aumento do desemprego e num aprofundamento das desigualdades sociais.
A literatura moçambicana tem sido fundamental para compreender como estas transformações afectaram o quotidiano das pessoas. Na obra O Comboio de Sal e Açúcar (1999), de Licínio Azevedo, a trajectória do comboio que transporta civis e militares durante a guerra simboliza a luta da população pela sobrevivência num contexto de escassez e instabilidade. Para Falconi, esta obra “reflecte o período de transição entre a economia socialista e o modelo neoliberal, evidenciando como a população se adaptou, muitas vezes de forma precária, às novas realidades económicas.”
A mobilidade como metáfora das desigualdades económicas
Outro aspecto essencial abordado por Falconi é a forma como a mobilidade é utilizada na literatura moçambicana para representar as desigualdades económicas e sociais. No romance Museu da Revolução (2022), de João Paulo Borges Coelho, um Toyota Hiace percorre as estradas de Moçambique, transportando passageiros que representam diferentes classes sociais. Segundo Falconi, “o percurso do veículo é uma metáfora do caminho de Moçambique no mundo globalizado, onde a entrada no sistema capitalista foi acompanhada por profundas desigualdades e pela fragilização dos serviços públicos”.
Falconi sublinha que “os meios de transporte na literatura moçambicana não são apenas cenários, mas sim símbolos da fragmentação social”, representando a dificuldade de acesso a oportunidades e a exclusão da maioria da população dos benefícios do desenvolvimento.
“A privatização de empresas estatais e a abertura ao investimento estrangeiro trouxeram consigo uma nova classe empresarial, muitas vezes ligada à elite política, enquanto a maior parte da população continuou a enfrentar dificuldades económicas”
Jessica Falconi
O impacto das privatizações na estrutura social
A privatização de empresas estatais e a abertura ao investimento estrangeiro trouxeram consigo uma nova classe empresarial, muitas vezes ligada à elite política, enquanto a maior parte da população continuou a enfrentar dificuldades económicas. A investigadora aponta para Terra Sonâmbula (1992), de Mia Couto, como um exemplo claro dessa desigualdade. No romance, os personagens Tuahir e Muidinga encontram abrigo num autocarro queimado, um cenário que simboliza o fracasso do projecto de modernização nacional.
Para Falconi, “a literatura moçambicana denuncia não apenas as consequências económicas das privatizações, mas também o impacto social, como o desemprego, a erosão das redes comunitárias e a marginalização da população mais pobre”. Esta crítica literária demonstra que a adopção do modelo neoliberal não conseguiu garantir um desenvolvimento equitativo e, em vez disso, aprofundou as disparidades sociais.
A literatura como resistência e memória histórica
Ao longo da sua análise, Falconi enfatiza que a literatura moçambicana não é apenas um espelho da realidade, mas um espaço de resistência e questionamento das decisões económicas e políticas. No romance O Outro Pé da Sereia (2006), de Mia Couto, há uma crítica subtil às desigualdades criadas pelo neoliberalismo, apresentando personagens marginalizadas que tentam sobreviver num contexto de injustiça económica.
A investigadora defende que “a literatura moçambicana tem sido um importante meio de preservação da memória colectiva, permitindo que as gerações futuras compreendam os desafios enfrentados pelo País na sua trajectória de desenvolvimento”. Essa abordagem, segundo Falconi, é essencial para entender os impactos das reformas económicas não apenas do ponto de vista estatístico, mas também humano.
À medida que o País continua a enfrentar desafios na sua estrutura económica, Falconi argumenta que “as obras literárias desempenham um papel crucial no debate público, ajudando a sociedade a reflectir sobre os impactos das políticas económicas e a questionar as desigualdades geradas pelo sistema neoliberal.”
Com uma abordagem interdisciplinar, a análise da literatura moçambicana revela que os efeitos das privatizações e da transição para a economia de mercado vão além das estatísticas e políticas governamentais, influenciando o dia-a-dia da população e redefinindo a identidade nacional. Para Falconi, “a literatura não apenas regista as mudanças económicas, como também as traduz em experiências humanas, permitindo um olhar mais profundo sobre as transformações que moldam Moçambique no século XXI.” (DE)
Texto: Felisberto Ruco