Por Josué Bila
São Paulo, Setembro de 2023
O continente africano, em decorrência da escravatura, colonização e, mais recentemente, independências, as quais resultaram em Estados “soberanos”, foi introduzido à modernidade global ocidental, ainda que mantenha parte de suas cosmologias e cosmovisões, o que aqueles sem sagacidade conceitual costumam chamar de tradições.
Os colonizadores, porque provinham de cosmovisões, filosofias políticas e padrões econômicos diferentes e desiguais, impuseram certos valores às sociedades colonizadas, razão pela qual, sem entrar em detalhes etnográficos, os comportamentos entre moçambicanos e zimbabweanos, por exemplo, apresentam algumas diferenças, igualmente dos impérios colonizadores. No geral, as elites e mesmo as classes médias dos países anglófonos apresentam rendimentos sofisticados e superiores, se comparados aos lusófonos. Mesmo aqui, no continente americano, as mentalidades das elites americanas e brasileiras apresentam diferenças substanciais na organização social, política e econômica. O que salva o Brasil da “maldição portuguesa”, se comparado às ex-colônias lusas em África, é talvez porque as suas elites simbolicamente se distanciaram de Portugal, e mesmo nas piadas locais, bem popularizadas, “os portugueses são burros”. A elite moçambicana, com a sua consagrada “Bíblia lusófona”, popularmente conhecida como José Maria Relvas, jamais ousaria assim adjetivar o seu dono assimilacionista não somente porque incorreria em insultos racistas contra um grupo populacional europeu, mas porque a sua maior “escada civilizacional moderna” é proveniente das ondas ibéricas. Aliás, o Brasil lava a “maldição portuguesa” se associando com americanos do Norte e outros europeus da Itália, França e ao Norte.
Por Moçambique ter sido colonizado pelas elites ibéricas apresenta certas características sociais e econômicas, as quais, mesmo que não as explore devidamente, mobilizam certos comportamentos na política e na sociedade. Há um aspecto de que muitos intelectuais e acadêmicos se furtam a explorar, relativo à religião dos colonizadores. As elites ibéricas trouxeram o catolicismo e todas as suas perversidades religiosas, a título de exemplo, a introdução de uma multifacetada carga de panteões em quem se deve prostrar, dependendo da aflição dos suplicantes. Lembremos que o catolicismo foi a primeira instituição indutora das perversidades no cristianismo primitivo e simples, ao introduzir privilégios políticos e outras regalias na vida das lideranças religiosas. A perversidade católica também se desdobra no facto de que o catolicismo pressupõe o esmagamento do monoteísmo milenar, que caracteriza(va) a cosmovisão judaico-cristã, a qual foi resgatada pela Reforma da Igreja, secundado pelo desenvolvimento das instituições democráticas, capitalistas e educacionais – as sociedades que se deixaram avassalar pelo protestantismo erradicaram o analfabetismo e universalizaram a educação, como política pública, enquanto na maioria das católicas a educação primava nas elites e nas classes médias, reprodutoras do status quo.
Enquanto outras colónias e povoamentos britânicos ganhavam as suas independências, com elites pretas educadas nos sistemas de educação de qualidade, Portugal, em Moçambique, dos anos 1950 a 1960, tinha apenas um terço de portugueses (brancos) que sabia ler e escrever, segundo Joseph Hanlon e Teresa Smart (Há mais bicicletas – mas há desenvolvimento?), com uma religião católica subdesenvolvida e uma mentalidade econômica do compadrio e da enxada. Aliás, além desses fatores, Portugal mandava para as suas colônias africanas os piores de seus babaquaras, provindos de regiões campestres, os quais dominavam a manipulação das enxadas e não das máquinas e nem das técnicas da revolução industrial. O colonato de Lionde, em Chokwe, na província moçambicana de Gaza, recebeu esse exemplo de colonizadores rafeiros e grosseiros, de baixo estirpe humano, sertanejos e desdentados, provincianos e sarrafaçais, otários e babacas, como se pode depreender num documentário da RTP intitulado “A segregação racial nas antigas colônias africanas de Portugal”. Aliás, o descendente de portugueses e advogado Albano Silva, no mesmo documentário, revela que, dada à estratificação e do peso das hierarquias sociais, a maioria dos lusitanos era de “terceira categoria”, até ao ponto de a sua própria mãe, a qual vivia em Lionde, em casos de boleia, ficava na carroceria e não no assento ao lado dos condutores portugueses. No mesmo documentário, um português, de cosmovisão babaquara, salientou que estava feliz, porque finalmente pegaria as “tetas das pretas”. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos (no livro Pela mão de Alice) escreve que os viajantes e estudiosos da Europa do Norte adjetivavam os portugueses de “primitivos” e “selvagens”, em decorrência dos seus baixos padrões éticos e civilizacionais.
No plano político-estatal, Portugal era fustigado e avassalado pela ditadura de Antônio Salazar, perseguindo pensadores e reformadores políticos, os quais lutavam pela ideologia da democracia liberal. Naquelas tantas obras do Dr. Adriano Moreira lê-se que a administração portuguesa perseguia instituições cívicas, partidos políticos, grupos contestadores e impedia o desenvolvimento de uma imprensa livre, o que igualmente acontecia na vizinha ibérica do ditador Francisco Franco.
Ao observar as elites moçambicanas, sempre me ocorrem esses dados da história da colonização portuguesa no País. As nossas elites, num ponto de vista estrutural, são rafeiras e grosseiras e mesmo a sua base de educação, até hoje, reflete um Portugal do atraso em todos aspectos das glórias e modernidades ocidentais. Como fariam diferente de sua fonte? Uma elite preta cujos colonizadores e inspiradores estavam satisfeitos, porque pegavam nas “tetas das pretas…”
Ademais, as dificuldades das nossas elites em ritualizar discursos democráticos, já inscritos na alma da nossa Constituição, e em produzir e implementar políticas públicas, em resposta às obrigações republicanas do nosso Estado, passa necessariamente pela compreensão das lavagens cerebrais e dos traumas de que as nossas elites sofreram no tempo colonial. O projeto democrático e republicano não se encontra cravado nas suas mentalidades e, consequentemente, nas suas relações políticas com os cidadãos. Para as nossas elites, os moçambicanos comuns, simbolicamente, são uma perpetuação dos “indígenas” e “primitivos”, enquanto elas (as elites) são a representação dos portugueses e assimilados. Outro fator ligado a isso é a sua forçada cooperação com os comunismos violentos e ditatoriais, antes e depois da luta de Libertação Nacional, onde a operacionalização dos rituais das democracias liberais e das repúblicas constitucionais era nula – e continua nula.
Quando observamos jovens que têm acesso a palácios e trabalham com as elites governamentais (e igualmente econômicas) exibindo bebidas caras e casas luxuosas pelas redes sociais, num país onde temos milhões na miséria das misérias, precisamos do espelho da História, para compreendermos as bases em que essas cosmovisões da nossa maldição social se assentam: fomos colonizados por portugueses rafeiros e grosseiros, e temos essa herança cravada nas nossas relações sociais, como se pode compreender nos textos do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, no livro Pela mão de Alice. Desta maneira, os nossos assimilados e neo-assimilados, por mais que queiram exibir alguma civilidade, foram educados pela pior estirpe portuguesa, brutos e primitivos aos olhos dos europeus anglo-saxônicos e outros cujos aspectos de desenvolvimento industrial, ética republicana e democracia eram e são sofisticados. Esses todos factores, os quais os arrolei para uma compreensão das nossas babaquarices nacionais, não explicam tudo, mas um estudo aprofundado duvido muito que não poderia tomá-los academicamente, para que o texto fosse explicativo e compreensível, revelando o que condiciona a que as nossas elites sejam rafeiras e grosseiras. Factualmente, as nossas elites são rafeiras e grosseiras. (Moz24h)