Opiniao

O TERRORISMO EM CABO DELGADO É DE ORIGEM POLÍTICA? Uma crítica à leitura de João Bernardo Honwana

Por Tiago J.B. Paqueliua

Introdução

Na entrevista concedida ao canal DW, o especialista moçambicano João Bernardo Honwana defende a tese de que a insurgência jihadista em Cabo Delgado tem origem eminentemente política, e que sua solução passa necessariamente pelo diálogo interno entre os moçambicanos, o que implicaria reconhecer, segundo ele, que há segmentos populacionais que se identificam com a doutrina fundamentalista islâmica importada.

Esta posição, ainda que à primeira vista razoável em seu apelo à resolução política dos conflitos, carece de maior rigor empírico e ignora elementos centrais da realidade concreta no terreno, sobretudo no que respeita à resistência local às inovações doutrinais impostas pelos insurgentes.

1. A premissa da identificação doutrinária: uma generalização problemática

Ao afirmar que “existem populações que mais se identificam com a doutrina fundamentalista importada do estrangeiro”, Honwana adota uma formulação que, além de imprecisa, pode incorrer em um erro analítico sério: o de supor adesão voluntária onde há, na verdade, resistência, coação e sobrevivência.

Em comunidades como Mocímboa da Praia, berço do fenômeno jihadista em Moçambique, a realidade tem demonstrado uma clara rejeição à nova doutrina, não só por parte de líderes religiosos islâmicos locais, mas também pelas comunidades de fiéis em geral.

Registos de campo e testemunhos locais indicam que os primeiros missionários que introduziram a doutrina radical — possivelmente de origem árabe — foram contestados nas próprias mesquitas por líderes tradicionais, tanto pela forma (não respeitam rituais como a ablução e o descalçar dos sapatos) quanto pelo conteúdo teológico, que diverge da interpretação islâmica convencional seguida pela maioria das comunidades muçulmanas locais.

Esse antagonismo é expresso não apenas no plano simbólico, mas também no plano físico: mesquitas que rejeitaram os insurgentes foram posteriormente atacadas por eles, evidência clara de que o grupo impõe a sua visão à força, e não por conquista ideológica orgânica.

2. A ausência de adesão espontânea: o argumento da heresia

Outro ponto central que contradiz a leitura de Honwana é o fato de que os líderes religiosos locais denunciam os insurgentes como hereges. Isso não é um detalhe secundário.

Numa sociedade onde a autoridade religiosa é central à organização comunitária, a rejeição clerical da doutrina extremista mina qualquer hipótese de adesão voluntária ou identificação profunda das populações com a ideologia jihadista.

Além disso, a pergunta fundamental que desestabiliza a tese da identificação é: onde estão esses que aderiram espontaneamente? Não há evidência de bases comunitárias ou movimentos sociais locais sustentando as premissas ideológicas do jihadismo em Cabo Delgado. O que há é medo, coação, deslocamento forçado e destruição de formas tradicionais de vida — não construção de uma nova ordem religiosa aceita socialmente.

3. Conflito político, sim – mas de que natureza?

Não se nega que o conflito em Cabo Delgado tenha uma dimensão política. Mas a sua politização não pode ser confundida com uma motivação política popular ou com uma insurgência interna com legitimidade comunitária.

A politização a que se refere Honwana precisa ser compreendida antes como resultado do fracasso do Estado moçambicano em assegurar condições básicas de vida, segurança, justiça e representatividade à população local.

Essa negligência abriu espaço para a atuação de grupos armados transnacionais que se aproveitam do vácuo de soberania para avançar sua agenda ideológica. Contudo, isso não equivale a uma “política interna” legítima ou ao surgimento de uma “alternativa política local”, mas sim à instrumentalização da crise sociopolítica por uma estrutura violenta que se impõe por meio do terror e da desestruturação das redes sociais tradicionais.

4. A solução política e a escuta das populações

Honwana está repleto de razão ao defender que a solução não pode ser exclusivamente militar. A história africana já demonstrou o fracasso de soluções exclusivamente securitárias. No entanto, sua proposta de escutar os insurgentes como “parte da população” deve ser cuidadosamente qualificada.

Escutar os insurgentes como atores políticos é diferente de reconhecer neles representantes legítimos das comunidades. O verdadeiro diálogo deve ocorrer com as comunidades afetadas, com os líderes religiosos tradicionais, com os jovens marginalizados, com os deslocados — e não com aqueles que impõem à bala uma doutrina que nem mesmo respeita os rituais básicos da fé que alegam defender.

Conclusão

A leitura de Honwana oferece uma perspectiva valiosa ao recentrar a atenção no contexto político interno como condição para a paz em Cabo Delgado. No entanto, sua tese sobre a suposta identificação das populações locais com o extremismo islâmico carece de sustentação empírica e incorre em um erro de diagnóstico que pode comprometer o próprio desenho de soluções eficazes.

Ao ignorar a rejeição religiosa e cultural da doutrina jihadista pelas populações, corre-se o risco de legitimar, ainda que involuntariamente, os próprios algozes das comunidades que se pretende proteger. A insurgência em Cabo Delgado não é o reflexo de uma escolha popular, mas sim de um colapso estatal explorado por forças externas.

A resposta deve ser política, sim — mas ancorada na realidade concreta dos que resistem, e não dos que impõem.

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