Por Tiago J.B. Paqueliua
“Mesmo morto, o jacaré permanece jacaré — sem dentes, sem garras, sem cauda… mas com cicatrizes que ninguém esquece.”
Nas margens longínquas do rio das Pedras, lá para os lados de Massinga, na província de Inhambane — a quem Vasco da Gama chamou de “Terra de Boa Gente” — vivia um velho contador de histórias, e exímio mulherengo, de nome Zunguze. Não confundir com o pescador Zunguza da Albufeira de Massingir, que só sabia falar de peixes e redes. Este era o Tio Zunguze de Massinga, nascido em Inguane, há poucos metros da subida da EN1, local onde morreu o Comandante Jossias Tongagarra do Zimbábwe: filósofo da palhota, xamã da bebida de canhu e confidente de Calisto Mufaniquisso — o mesmo que comeu poeira e sobreviveu ao milagre de não ser petisco de leões no Centro de Reeducação de Namacambale, distrito de Mavago, província do Niassa, no tempo das vacas magras.
Numa noite abafada de 1989, à volta de uma cabaça de xicanhu (ou canhu, para os brancos saberem que se trata do sangue afrodisíaco da nossa terra), Tio Zunguze evocou um jacaré. Mas não era um bicho qualquer, desses que vagueiam nas águas do Zambeze em Chemba, província de Sofala. Era um jacaré-metáfora: símbolo de todo predador travestido de protector, bicho de farda, farda de besta. Um jacaré que, segundo ele, se chamava Sathana — que em português quer dizer Satanás. Não podia ser nome mais apropriado.
Esse tal Sathana ostentava a patente de Capitão, um fantasma fardado da guerra dos 16 anos, e havia feito da província de Gaza o seu curral de barbárie. Enterrou vivas dezenas de almas em Xhipahla. Diziam que operava por conta de um governo, mas parecia agir por conta de um inferno ainda pior.
“O jacaré é por natureza indomável”, disse Zunguze. “Mas depois de morto, amansa.”
Patrício, meio bêbado, perguntou:
— Mas como se doma um morto, Zunguze?
Tio Zunguze espreitou o fundo do garrafão, percebeu que nem “ximinha” havia — sobra bebível — e respondeu com um ar sério:
— Nem há ximinha aqui. Só conto se me deres um xibakela — cinco litros de canhu, levo para casa, e bebo com a minha esposa, para que ela não vá beber com quem respeita a tradição de surpresas desagradáveis… porque, meu filho, como já disse: no canhu há traições que morrem no canhu. Vocês todos sabem, não são crianças.
Negócio feito. E então ele falou, como só os mestres ensinados pelo tempo sabem falar:
“Domar um jacaré morto é transformá-lo em exposição. Tiramos-lhe o coração — já não mata. Tiramos-lhe as garras, os dentes, a cauda, os pulmões. Deitamos fora o bílis e parte do cérebro. A carne é comida assada ou cozida, a pele vendida a bom preço, o esqueleto pendurado numa qualquer parede ou enterrado num monumento qualquer. Fazemos cerimónias em seu nome, só porque é de costume. Tomamos chá doce no seu funeral. Tocamos batuque e dançamos xigubo sobre a memória do seu terror, agora adocicada pela nostalgia dos cobardes. Até os inimigos aparecem nas missas de sétimo dia, com envelopes cheios de migalhas de metical. Isso, sim, é domar o jacaré. E domar a valer.”
E, de súbito, entre um gole e outro, em tom baixo, como quem fala para o espírito das estrelas, o velho deixou cair a verdadeira lição:
“Mesmo os governantes de hoje — esses que mandam e matam — serão domáveis à nossa maneira. Tudo depende da pressa com que lhes tirarmos o coração. Mas como o peixe morre pela boca, quem falou não está aqui.”
A noite já ia longa. Quase 23 horas. Cada um recolheu à sua casa, para repousar — e sobretudo fazer o kufamba hi massangu, que, traduzido literalmente para a língua dos tugas, quer dizer “andar na esteira” (mas na língua indígena, com um sentido que vai além da esteira), embriagado mais pela densidade da história do que pelo álcool do canhu ou a gosma do kufamba hi massangu.
Mas enquanto caminhávamos de volta — eu, Pirilampo nas Trevas, Zunguze, Patrício e o velho Marumecane — cantávamos em coro o que a vida nos vinha ensinando:
“Não vamos esquecer o tempo que passou…”
E entre uma estrofe e outra, entoávamos o refrão da nossa bebedeira:
“O jacaré já morreu, mas ainda morde!”
E quanto mais o repetíamos, mais a nossa raiva se convertia em coragem de agir.
Porque ninguém, absolutamente ninguém, esquece as mordeduras de um jacaré — mesmo depois de morto.
Seja ele branco ou preto. Governante ou guerrilheiro. Charlatão ou ladrão que finge ser pastor.
Quem já dançou na corda bamba e comeu pão amassado por demónios jamais confia nas promessas traiçoeiras de jacaré.
E se há algo que se deve sempre recordar é que:
As cicatrizes deixadas por um jacaré são vitalícias.
Mesmo sem coração, permanece jacaré. Um bicho indomável.
E talvez isso explique por que, em Moçambique, as peles secas do colonialismo ainda coçam, e os fantasmas da libertação continuam a assombrar.
Em todo o caso, domemos o jacaré.
Porque para a liberdade nunca é tarde demais.
Epílogo
Nos dias seguintes, a história do jacaré do Tio Zunguze falou profundamente comigo. Na primeira oportunidade, tomarei o seu lugar e serei eu a lembrar os meus compatriotas: líderes que abusam do poder são predadores que se alimentam do medo e da submissão. Mesmo depois de abandonarem o cargo, as cicatrizes que deixam continuam a sangrar na carne da sociedade.
A liderança, dizia Hannah Arendt, é inseparável da responsabilidade. Quando esta é descurada, instala-se a banalidade do mal: o poder torna-se um fim em si mesmo, e o povo, mero instrumento. Max Weber advertia que a política autêntica exige uma ética da responsabilidade, não apenas das convicções. E sem esta ética, o poder degenera em violência.
Precisamos urgentemente de alfabetizar os líderes nas lides da sua missão, chamando-os à consciência plena das consequências dos seus actos. Como escreveu Paulo Freire, “a educação é um acto político”, e não podemos mais deixar a liderança entregue a analfabetos morais, mesmo que letrados.
Mais cedo ou mais tarde, os povos, o moçambicano incluído, aprenderão a criar mecanismos para prevenir abusos e responsabilizar os seus dirigentes. E já é tempo. Como bem vaticinou Frantz Fanon, “cada geração deve, na relativa obscuridade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la”. A nossa missão é clara: domar o jacaré, enquanto há tempo. Isso é cumprir nossa missão. Não somos traidores.
Porque para a liberdade — e para a justiça — nunca é tarde demais.
Apêndice
Bibliografia Comentada & Glossário Filosófico das Citações
1. Hannah Arendt (1906–1975)
Filósofa e teórica política alemã, naturalizada norte-americana, conhecida pela obra Eichmann em Jerusalém (1963), onde introduz o conceito da “banalidade do mal”. Arendt argumenta que a ausência de reflexão crítica e de responsabilidade moral em contextos de obediência cega conduz a actos monstruosos praticados por pessoas comuns.
Citação evocada: “A responsabilidade é a essência da liberdade.”
2. Max Weber (1864–1920)
Sociólogo e economista político alemão, fundador da sociologia moderna. Na sua conferência A Política como Vocação (1919), distingue entre a ética da convicção (agir por princípios) e a ética da responsabilidade (agir ponderando consequências).
Citação evocada: “A política autêntica exige uma ética da responsabilidade.”
3. Paulo Freire (1921–1997)
Educador e filósofo brasileiro, autor de Pedagogia do Oprimido (1968), obra seminal que defende a educação como instrumento de libertação social e política. Para Freire, a alfabetização vai além da leitura de palavras — é a leitura do mundo.
Citação evocada: “A educação é um acto político.”
4. Frantz Fanon (1925–1961)
Psiquiatra e pensador martiniquense, célebre pela obra Os Condenados da Terra (1961), onde denuncia os efeitos psicológicos do colonialismo e convoca os povos colonizados à acção revolucionária.
Citação directa: “Cada geração deve, na relativa obscuridade, descobrir a sua missão, cumpri-la ou traí-la.”
Glossário Filosófico
Kufamba hi massangu: Conceito antroposociológico, para se referir ao manter relações sexuais em Xi-Changana, língua do Sul de Moçambique, sem que as crianças entendam o verdadeiro sentido.
Banalidade do Mal:
Conceito de Hannah Arendt, que descreve como o mal extremo pode ser cometido por pessoas comuns, não por monstros, mas por indivíduos que se recusam a pensar criticamente sobre as suas acções.
Ética da Responsabilidade:
Conceito de Max Weber, que enfatiza a importância de considerar os efeitos das decisões políticas sobre os outros. É distinta da ética da convicção, que se guia por princípios rígidos independentemente das consequências.
Alfabetização Política:
Em Paulo Freire, trata-se da capacidade crítica de compreender o mundo, os mecanismos de opressão e as estruturas de poder, indo muito além da leitura funcional. A educação, neste sentido, é libertadora.
Missão Geracional:
Em Frantz Fanon, refere-se ao dever histórico de cada geração em confrontar os desafios do seu tempo, assumindo responsabilidade activa na transformação social.