Economia Politica

DO ROVUMA AO SAVE: Como o Garimpo Ilegal se Tornou a Verdadeira Fronteira do Estado Paralelo

Jerry Maquenzi

 

A mineração artesanal e ilegal em Moçambique não é um fenómeno isolado, restrito a um ou outro distrito. É um fenómeno nacional, transversal às províncias, com raízes estruturais profundas. Durante anos, a narrativa oficial tentou convencer a opinião pública de que o garimpo é apenas uma actividade marginal, praticada por jovens e camponeses sem alternativas de sobrevivência. Mas a minha experiência directa em Cabo Delgado, particularmente nos distritos de Montepuez (Nairoto e Namanhumbir), Mueda (Negomano), revelou-me uma realidade muito mais complexa: o garimpo ilegal funciona como um Estado paralelo, com suas próprias regras, economias, sistemas de protecção e até mecanismos de governação informal.

O que está em causa já não é apenas a exploração desordenada de recursos minerais. É a captura de territórios inteiros por redes que misturam garimpeiros, comerciantes locais e estrangeiros, polícias, fiscais e elites políticas. É a criação de verdadeiras “zonas francas” onde o Estado oficial é substituído por arranjos privados, informais e ilícitos. Este artigo é um testemunho crítico daquilo que observei no terreno: mercados clandestinos, corrupção institucionalizada, cumplicidade das autoridades e a transformação de comunidades rurais em epicentros de economias ilegais. A partir dessa experiência, argumento que o garimpo artesanal e ilegal deve ser entendido como um problema nacional e político, e não apenas uma actividade económica de sobrevivência.

Este artigo é parte de um conjunto de textos que escrevo em torno da poluição ambiental provocada pelas minas de ouro exploradas por empresas chinesas em Manica, cujos impactos sociais e ecológicos têm sido documentados em relatórios do CIP (30.09.2035) e em outras mídias nacionais. Assim, embora aqui o foco recaia sobre a minha experiência de campo em Cabo Delgado, a análise conecta-se a uma reflexão mais ampla sobre a forma como os recursos minerais em Moçambique, sejam explorados por garimpeiros artesanais ou por grandes empresas estrangeiras, reproduzem práticas de degradação ambiental, captura do Estado e exclusão social.

  1. O Campo como Laboratório do Estado Paralelo

Em Montepuez, por exemplo, a exploração ilegal de rubis envolve milhares de indivíduos, entre escavadores, vendedores de bens, intermediários e compradores estrangeiros. De acordo com dados recolhidos em entrevistas, entre 2012 e 2015 eram cerca de 10 mil envolvidos, número que caiu nos últimos anos, mas que ainda ronda entre 3 e 5 mil indivíduos.

O mais impressionante não é apenas a quantidade de indivíduos envolvidos. É o ecossistema social e económico criado em torno do garimpo:

  • Jovens que abandonaram a agricultura para procurar riqueza rápida.
  • Mulheres que cozinham e vendem comida nos locais de extração.
  • Crianças e adolescentes que, em vez de irem à escola, carregam pedras ou se empregam em serviços periféricos.
  • Comerciantes que abrem barracas de venda de arroz, combustível, roupas e até medicamentos.
  • Estrangeiros, sobretudo tanzanianos, que organizam a compra e exportação clandestina de rubis e ouro.

O garimpo, em muitos casos, substitui o Estado. Onde o governo não garante emprego, energia, saneamento ou serviços básicos, o garimpo cria bares, discotecas, pensões improvisadas, mercados e até clínicas clandestinas. Em Nairoto, por exemplo, cheguei a observar campas improvisadas de garimpeiros que morreram de cólera por falta de condições sanitárias, ao lado de barracas onde se vendiam bebidas, roupas e outros tipos de bens.

Trata-se de um laboratório do Estado paralelo: territórios onde a lei oficial não se aplica, mas onde existem normas, hierarquias e sistemas de cobrança ilegítimos. Cada entrada ou saída da mina é regulada por forças locais ou polícias que cobram taxas informais. Cada transacção de ouro ou rubi passa por intermediários que têm o monopólio da compra. Cada garimpeiro deve contribuir para fundos clandestinos de protecção.

2.    A Corrupção como Engrenagem

A experiência em Cabo Delgado mostra que a corrupção não é um desvio ocasional, mas o motor que mantém o sistema de mineração ilegal em funcionamento.

  • Polícias: nas estradas entre Montepuez e Nairoto, observei cancelas informais geridas por agentes da PRM. Cada moto que passava era obrigada a pagar entre 50 a 100 meticais, sob pretexto de fiscalização. Era impossível não perceber que todos conheciam quem ia para a mina e quem voltava de lá.
  • Fiscais do MIREME: em teoria, deveriam controlar a extração ilegal. Na prática, deslocam-se com recursos próprios e transformam a “fiscalização” num mecanismo de extorsão. Cada visita resulta em cobrança de “refresco” pago pelos garimpeiros ou pelos intermediários.
  • Forças locais armadas: em Mueda (em Omba), soube de casos em que grupos armados ligados às comunidades ou forças locais exigiam pagamentos e, em situações de conflito, disparavam contra garimpeiros ilegais. O garimpo, neste caso, é também uma arena de violência.

Em Montepuez, um técnico dos Recursos Minerais chegou a afirmar, em entrevista, que existem indícios claros de protecção estatal aos compradores ilegais de pedras preciosas. E mais: que estrangeiros, envolvidos, directamente no comércio de rubis, são também financiadores de campanhas eleitorais, comprando objectos simbólicos de angariação de fundos a preços exorbitantes.

A corrupção, portanto, não é apenas tolerada. É institucionalizada, ligando fiscais, polícias, elites políticas e empresários.

3.    As Rotas do Ouro e Rubi: Fronteiras Permeáveis e Exportação Clandestina

A mineração ilegal em Cabo Delgado não é apenas local. É transfronteiriça.

  • Em Mueda (Negomano), vi como as fronteiras com a Tanzânia funcionam como corredores de exportação clandestina. Garimpeiros transportam pedras preciosas nos bolsos, escondem em faróis de motorizadas ou recorrem a peões para atravessar sem levantar suspeitas.
  • O ouro extraído em Montepuez (Nairoto) tem como destino imediato a Tanzânia, mas dali segue para Dubai, China, Tailândia e até Estados Unidos.
  • Os rubis alimentam cadeias que chegam a Singapura, Sri Lanka e outros mercados asiáticos.

Estas rotas não funcionam sem cumplicidade oficial. Policiais, fiscais e autoridades fronteiriças cobram subornos para deixar passar pedras, madeira ou produtos agrícolas. O contrabando é uma engrenagem que liga o garimpo à economia global.

4.    O Impacto Social: Juventude, Mulheres e Comunidades

O garimpo ilegal tem efeitos devastadores sobre a juventude e as comunidades locais.

  • Juventude: em Namanhumbir e Ntola, observei adolescentes entre 10 e 14 anos envolvidos na extração. Muitos abandonam a escola, seduzidos pela promessa de dinheiro rápido. Mas a maioria acaba presa num ciclo de exploração e pobreza, vendendo pedras por valores irrisórios a intermediários.
  • Mulheres: participam activamente, não apenas como cozinheiras ou prostitutas, mas também como mineradoras. Em Montepuez, vi mulheres tanzanianas trabalhando lado a lado com homens, cavando rubis com picaretas.
  • Comunidades: a chegada do garimpo transforma aldeias inteiras. Barracas e bares multiplicam-se, a prostituição aumenta, o custo de vida dispara. Produtos básicos, como arroz e água, chegam a custar o dobro ou triplo do preço praticado em cidades vizinhas.

Paradoxalmente, estas comunidades vivem uma “modernidade precária”: têm energia solar, bares com música, filmes projectados em suaíli e comércio internacional de pedras, mas não têm escolas funcionais, hospitais equipados ou estradas transitáveis.

5.    O Estado Ausente e Cúmplice

O maior drama é que o Estado moçambicano não está ausente: ele está cúmplice.

  • Não há fiscalização séria porque muitos fiscais e polícias vivem do suborno.
  • Não há transparência na atribuição de licenças porque os títulos mineiros são capturados por elites próximas ao poder.
  • Não há políticas para formalizar o garimpo porque isso ameaçaria os interesses dos que lucram com a informalidade.

Em Montepuez, um funcionário de uma escola primária referiu que compradores estrangeiros ligados ao partido no poder financiam campanhas eleitorais, oferecendo dinheiro em troca de protecção política.

Vi também como polícias se transformaram em colectores privados de “taxas”, transformando o espaço público num mercado de favores.

Conclusão

A minha experiência em Cabo Delgado é apenas uma amostra do que acontece também em Tete, Nampula, Niassa e Manica. O garimpo artesanal e ilegal é hoje um problema nacional, atravessando fronteiras provinciais e sustentando redes de corrupção que vão do garimpeiro pobre ao dirigente político.

Não se trata apenas de economia informal: trata-se da construção de um Estado paralelo que mina a soberania nacional, destrói o ambiente, precariza comunidades e captura a juventude.

A solução não pode ser apenas repressiva. É preciso:

  • Formalizar o garimpo artesanal, criando cooperativas e fornecendo meios adequados.
  • Garantir transparência na concessão de títulos mineiros, publicando os beneficiários efectivos.
  • Romper o conluio entre elites políticas e empresários estrangeiros.
  • Investir em alternativas reais de emprego para a juventude, sob pena de continuar a perder gerações inteiras para a economia ilícita.

Do Rovuma ao Save, o garimpo ilegal é hoje o retrato de um Estado em crise. Se não for enfrentado com seriedade, continuará a ser a fronteira onde o Estado oficial perde para o Estado paralelo.

 

 

 

Referência

CIP (30.09.2025). O Custo Invisível do Ouro em Manica: Poluição hídrica por mercúrio e seus efeitos nas comunidades. Disponível em: https://www.cipmoz.org/2025/09/30/o-custo-invisivel-do-ouro-em-manica-poluicao-hidrica-por-mercurio-e-seus-efeitos-nas-comunidades/.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *