Opiniao

Da função identitária da razão

Anda aí um vídeo dum africano em Portugal a gritar para André Ventura que foi a Portugal para ir levar de volta o ouro que os portugueses roubaram de África. Parece-me patético tal como é patética a reacção do político português. Algo não está bem na maneira como queremos discutir este tipo de assuntos. Estive recentemente em Portugal e tive uma experiência interessante, mas algo desconcertante, numa reunião pública onde um jovem português, branco e inteligente, interveio dizendo: “sou contra as reparações às ex-colónias portuguesas.” A frase, solta, nem vinha a propósito porque estávamos a falar de outras coisas.
Depois da sessão, procurei conversar com ele. Perguntei-lhe por que era contra as reparações. Ele ofereceu três razões: primeiro, que Portugal não tinha que pedir desculpas; segundo, que o país deixou escolas, estradas e hospitais; e terceiro, que nenhum português actualmente vivo fez mal algum aos africanos. A conversa tornou-se, para mim, uma oportunidade rara de explorar não apenas as reticências de alguns portugueses face ao passado colonial, mas também o ponto de vista moral que sustenta essas posições. Perguntei-lhe se via alguma diferença entre pedir desculpas e fazer reparações. Expliquei que, para mim, é possível pedir desculpas sem necessariamente oferecer compensações materiais, e também que é possível reconhecer a necessidade de compensações sem fazer um pedido de perdão formal. Mas ele insistiu que ele e os seus pais nada fizeram e, por isso, não podiam ser responsabilizados.
Na tentativa de clarificar o conceito de responsabilidade, propus um exemplo hipotético: e se o meu avô tivesse enriquecido por meios criminosos, beneficiando o meu pai, que por sua vez me proporcionaria uma vida de privilégios que as vítimas dos crimes do avô nunca teriam? Ele rejeitou o exemplo, afirmando que não se aplica a países. Foi então que me recordei de ele se ter identificado como conservador de direita. Pensei em estabelecer uma ponte através do cristianismo, já que os cristãos ainda hoje expiam o pecado de Adão e Eva… Nem isso o demoveu.
Aí compreendi algo significativo: o problema não era de lógica, nem de factos, nem sequer de valores propriamente ditos. A sua posição era, acima de tudo, um gesto de pertença. Ao declarar-se contra as reparações, ele não estava a avaliar um argumento moral, mas a reiterar a sua filiação a uma comunidade, a saber a dos conservadores que usam politicamente os receios causados por qualquer revisão do passado. Essa realização levou-me a recordar uma pesquisa que fiz há anos em Moçambique sobre membros da Igreja Universal do Reino de Deus (e que nunca publiquei). Analisei vídeos de testemunhos de crentes, à procura de compreender como a chamada “teologia da prosperidade” estruturava a sua fé (tese em relação a qual sempre fui reticente). Descobri que, mais do que descrever milagres económicos ou reconciliações familiares, os testemunhos serviam para afirmar a identidade de quem os proferia: “sou um dos fiéis, sou um dos escolhidos.” O conteúdo factual era menos importante do que o gesto performativo de pertença.
Talvez devêssemos pensar certas posições políticas extremas da mesma maneira. Nalguns casos, argumentar com factos não é apenas inútil, pode até ser contraproducente. O que está em causa pode não ser o conteúdo da crença, mas a função social que ela satisfaz. A verdade, aí, serve mais para marcar lealdade do que para iluminar o entendimento. Se esse for o caso, então o desafio não está apenas em apresentar melhores argumentos. Está, talvez, em criar espaços onde as pessoas possam experimentar formas alternativas de pertença que não dependam da negação do outro. Só então o argumento voltará a fazer sentido.
Mas o que significa dizer que o argumento volta a fazer sentido só quando a pertença já está assegurada por outros meios? Ajuda-nos aqui a análise de Everett C. Hughes (recuperada por Howard S. Becker), ambos sociólogos americanos de gerações passadas. Hughes observou, com perspicácia, que certos argumentos racistas como, por exemplo, “os negros cheiram mal; por isso, precisam de instalações separadas” operam como silogismos truncados. O que se afirma é apenas a premissa menor (negros cheiram mal). A premissa maior (pessoas que cheiram mal devem ser segregadas) é deixada implícita porque é moralmente embaraçosa. Assim, os adversários bem-intencionados tentam rebater o facto (os negros cheiram mal?), sem confrontar o princípio oculto.
O que Hughes nos ensina é que, nestes casos, os factos empíricos são quase irrelevantes. A força do argumento não está na verdade da premissa, mas na função social de quem o profere. O argumento não é construído para ser lógico, mas sim para pertencer. E isso ajuda-nos a compreender o jovem português com quem conversei. A sua afirmação “sou contra as reparações” também pode ser lida como parte de um silogismo truncado, onde a premissa maior nunca é dita. Podemos reconstruí-lo assim: Premissa maior implícita: Quem não causou injustiça não deve pagar por ela. Premissa menor declarada: Os portugueses de hoje não causaram injustiça. Conclusao: Logo, os portugueses de hoje não devem pagar reparações.
Mas o mais interessante é perceber que a força desse raciocínio não vem da lógica interna. Vem de pelo menos quatro premissas tácitas, enraizadas na necessidade de afirmar pertença: Pertenço a um grupo inocente. A recusa da responsabilidade histórica é uma forma de proteger a imagem moral do grupo (nacional, familiar, político). O reconhecimento do mal passado ameaça quem sou. Admitir que houve injustiça, e que se beneficia dela, exige um desconfortável descentramento. Questionar o passado abre brechas perigosas. É como se todo o edifício moral que sustenta a identidade nacional pudesse ruir. Repetir o discurso do grupo é mais importante do que investigar a verdade. Porque o que está em jogo é ser visto como “um dos nossos”.
Como nos testemunhos dos fiéis da Igreja Universal que observei em Moçambique, o conteúdo do discurso serve, antes de tudo, para afirmar uma identidade. É por isso que factos e raciocínios podem falhar, simplesmente porque não são o que está verdadeiramente em disputa. Talvez o verdadeiro desafio, então, não seja convencer os outros com argumentos, mas criar espaços onde novas formas de pertença se tornem possíveis. Só aí, como sugeriu Hughes, teremos coragem de trazer à luz as premissas maiores e, quem sabe, reescrever silogismos mais justos.
Noto o mesmo fenómeno no debate público em Moçambique. Quem decidiu que é da Frelimo, PODEMOS, Renamo, MDM ou simplesmente Venancista dificilmente vai se deixar convencer por factos porque as premissas maiores que pensa defender são nutridas pela necessidade de marcar a sua pertença (e ser visto pelos outros como estando a ser firme). Daí a dificuldade de ler um texto ou ouvir um comentário televisivo com a disponibilidade de entender, não de proteger crenças. E quanto mais formada for a pessoa, mais difícil isso é, pois o uso da razão tem também a tendência de tornar pessoas inteligentes impenetráveis à crítica, nao por ignorância, mas sim porque aprenderam a encontrar formas superiores de defenderem o indefensável. (https://www.facebook.com/elisio.macamo)

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