Uma História de Resistência
Encontrámo-nos com o Orlando em Maputo. Ele estava na cidade para fazer exames medicos – fruto da violência policial a que foi sujeito durante a sua detenção, na sequência das eleições presidenciais no ano passado em Moçambique, e dos quase sete meses que passou encarcerado numa das penitênciárias mais infames do país.
Um homem calado e muito tímido, Orlando é muito bem articulado, e apesar da sua evidente fragilidade física, a sua fibra moral e as suas convicções permanecem tão fortes como sempre.
Orlando não é um criminoso. Ele é um dos milhares de Moçambicanos que foram presos nos meses que sucederam as eleições presidenciais de Outubro de 2024 – não porque estavam apenas a protestar, como é seu direito, ou porque calharam estar no lugar errado à hora errada, como tantos outros – mas porque foram deliberadamente visados.
O regime, sentindo-se extremamente ameaçado pela mais que justificada ira do seu povo após mais uma eleição vergonhosa e inegavelmente manipulada, ordenou às suas forças de segurança que suprimissem todas as ameaças conhecidas e vozes dissidentes, numa tentative de serenar os ânimos.
Membro da comunidade de Mudada no sul de Moçambique, que, juntamente com a comunidade de Mudissa, foram retiradas das suas terras para dar espaço à Moçambique Dugongo Cimentos Co., SARL, uma fábrica de cimento com ligações claríssimas com o Partido no poder, Orlando já vinha falando há muito tempo sobre as promessas incumpridas e os problemas causados pela empresa – empregos para os membros das comunidades, que nunca se materializaram porque pessoas de fora foram contratadas no seu lugar, um hospital e uma escola que foram prometidos mas nunca construídos, e uma vila de reassentamento mal planeada e mal construída que alaga cada vez que há chuvas fortes, e construída muito depois do que havia sido prometido e depois de muita pressão popular. Muitas das famílias desalojadas ainda esperam pelas prometidas casas de reassentamento e compensações, mais de quinze anos após terem sido desalojadas…
Mais do que um padrão, este é o mais famoso conto do vigário de África. Usado inúmeras vezes para enganar comunidades em Moçambique e por todo o continente em nome do “desenvolvimento”, apresentando investimentos estrangeiros como se fossem transformadores para as populações locais quando, na verdade, acabam beneficiando pessoas de fora e os interesses das elites – um conto com consequências devastadoras para as pessoas e para o planeta.
Apesar de não ser um líder comunitário, a frontalidade do Orlando fez-lhe ganhar o respeito dos seus companheiros, mas também a reputação – no seio do governo local e das estruturas de liderança da comunidade, também capturadas pelo governo local – de ser um ‘confuso’ e um ‘agitador’. Esta reputação valeu-lhe duas detenções brutais.
A primeira , no dia 06 de Fevereiro de 2025, nas mãos da UIR – a polícia de intervenção rápida de Moçambique. Ele e outros dois homens da sua comunidade foram detidos por três dias após protestarem contra o desaparecimento de um residente local – Leonardo – que afirmavam ter sido levado por militares e cujo paradeiro as autoridades se recusavam a explicar ou sequer admitir. (Mais tarde, durante os quase sete meses em que esteve preso, Orlando viria a encontrar Leonardo na cadeia – vivo, mas preso e a enfrentar o mesmo tipo de acusações.) Depois de ser detido, Orlando foi transportado deitado na parte de trás de uma carrinha da polícia, com os olhos vendados, sob os pés dos agentes que estavam sentados nos bancos da mesma, e que não paravam de chutá-lo e agredi-lo com as suas espingardas. Foi brutalmente espancado e torturado, e solto após 3 dias.
A segunda detenção veio apenas 10 dias depois destes acontecimentos. Desta vez numa noite de domingo, a polícia de investigação criminal de Moçambique (SERNIC) entrou em sua casa sem ser convidada e sem um mandato, agrediu-o à frente da sua família, forçou-o a entrar num carro onde foi violentamente agredido no caminho para Maputo, e apresentou-lhe um documento com uma lista de pessoas que queriam saber se ele conhecia – um detalhe que expõe claramente a natureza persecutória destas detenções.
Quando lhe perguntámos se a sua detenção tinha amedrontado a sua comunidade, ele foi completamente honesto: “Muito. Mesmo o régulo agora não diz nada.” O que aconteceu ao Orlando não é um caso isolado. Espelha o clima político que tem, cada vez mais, definido Moçambique nas últimas décadas – uma clima de medo, repressão e profunda decadência institucional.
Da Revolução à Repressão
A actual crise política em Moçambique tem as suas raízes num passado longo e conturbado. Os problemas no país começaram com os mais de quatro séculos de domínio Português, que moldou profundamente um sistema construído para a exploração e domínio colonial.
Em 1962, inspirada por ideais Marxistas, a FRELIMO foi fundada com uma missão clara: lutar pela libertação e desmantelar o sistema de opressão imperialista imposto pelos Portugueses. A independência chegou em 1975, na sequência da queda do regime fascista de Portugal e de mais uma década de luta armada. Samora Machel, o líder carismático da FRELIMO, tornou-se o primeiro presidente do país. Sob a sua liderança, o governo nacionalizou a terra e as indústrias chave no país, e lançou campanhas de literacia e saúde em massa, alinhando-se com os movimentos socialistas globais.
Embora idealista e amplamente apoiado, o novo Estado enfrentou sérios desafios desde o início: Isolamento económico – resultante do recuo dos poderes Ocidentais devido ao seu posicionamento Marxista-Leninista, e do facto do apoio do bloco do Leste ser insuficiente para colmatar as dificuldades.
Sabotagem por parte dos regimes minoritários brancos da vizinhança – que viram a revolução socialista em Moçambique como uma ameaça à sua própria ordem racial e colonial.
Autoritarismo de Estado – apesar da sua retórica emancipatória, a FRELIMO justificou falhas brutais como resistência contra uma ameaça imperialista genuína, interpretando qualquer crítica como contra-revolucionária e sendo implacável com qualquer dissidência.
De forma lenta mas inequívoca, os ideais igualitários da revolução começaram a erodir sob a tensão das contradições internas e da sabotagem externa.
Em 1977, uma brutal guerra civil eclodiu entre a FRELIMO e a RENAMO, um movimento rebelde apoiado pelo regime de apartheid da África do Sul. Duraria 16 anos. Entre o combate e a fome, mais de 1 milhão de pessoas morreram.
A morte precoce de Machel em 1986 marcou um importante ponto de viragem, levando a uma mudança na direcção política da FRELIMO. Na década de 90, a FRELIMO já havia descartado os seus ideais Marxistas, abraçado o neoliberalismo e consolidado o poder através de redes elitistas políticas e militares – que tornou o país virtualmente à prova de golpe – juntamente com a corrupção sistémica.
O FMI promoveu a emergência de oligarcas do Estado, que usaram o seu status político para ganhar poder económico. Em troca, os novos oligarcas garantiam que as empresas e países estrangeiros beneficiavam-se do gás, do carvão, dos rubis e da energia hidroeléctrica 3 .
Os revolucionários tornaram-se oligarcas, e os oligarcas tornaram-se os administradores locais de uma nova forma de colonialismo. O sonho de libertação deu lugar a uma realidade de desigualdade sistémica, captura do Estado e decadência política. O sistema que uma vez a FRELIMO havia jurado desmantelar tinha ganho – e permanece até hoje, ironicamente com a própria elite da FRELIMO sentada ao volante.
Ao longo dos últimos 30 anos, a corrupção, a desigualdade e a marginalização aprofundaram- se, mas com o advento das redes sociais e do telemóvel, tornou-se mais difícil seconder informação e controlar a narrativa. O descontentamento popular cresceu exponencialmente, e à medida que a FRELIMO sentiu o seu poder a escorregar, a repressão cresceu também, o espaço democrático encolheu, e as eleições tornaram-se uma farsa. No passado aclamados como heróis da luta de libertação, a FRELIMO tornou-se alienada das mesmas pessoas que lutara para libertar.
A morte do proeminente artista de hip hop Azagaia em Março de 2023 – um crítico feroz e destemido do regime – acendeu o fogo adormecido da “primavera árabe” Moçambicana,
despertando uma geração sedenta por justiça, dignidade e emancipação económica. Tal como em 2008, quando escreveu “Povo no Poder” durante uma outra onda de manifestações, a sua música transformou-se na trilha sonora dos protestos que acompanharam as fraudulentas eleições municipais nos finais desse ano de 2023, e novamente durante as eleições gerais em Outubro de 2024.
As Eleições Gerais do Ano Passado
No dia 9 de Outubro de 2024, decorreram em Moçambique as sétimas eleições gerais desde a introdução da democracia multipartidária em 1994. O candidato da FRELIMO – partido que está no poder desde a independência – Daniel Chapo, foi declarado vencedor com mais de 70% dos votos.
O seu principal opositor, Venâncio Mondlane – um pastor populista com posições e alianças políticas de tendências conservadoras, e que ao longo dos últimos anos reuniu muitos seguidores ao usar inteligentemente as redes sociais para se engajar e mobilizar os seus apoiantes – contestou os resultados, afirmando ter ganho. Alegações de fraude eleitoral generalizada – corroboradas por observadores independentes – apontavam para enchimento de urnas, intimidação de eleitores e manipulação de resultados. Os órgãos eleitorais do país fingiram não ver estas alegações. O Conselho Constitucional, considerado politicamente capturado, confirmou os resultados oficiais, descartando as alegações de fraude. Esta decisão erodiu ainda mais a confiança do público e contribuiu para a continuação dos protestos.
As alegações de fraude provocaram protestos por todo o país, tanto espontâneos como coordenados por Mondlane e a sua equipa. O governo respondeu com negacionismo, menosprezo, e forte repressão, incluindo balas de verdade, detenções arbitrárias e espancamentos. No dia 19 de Outubro, duas figuras chave da oposição – Elvino Dias, o advogado de Mondlane, e Paulo Guambe, um oficial sénior da sua campanha – foram assassinados numa emboscada em Maputo, chocando a sociedade civil e intensificando a instabilidade. Mondlane saiu do país alegando graves ameaças e convocou 25 dias de protestos – um para cada bala disparada contra os seus colegas.
Desse momento até ao final de Janeiro de 2025, a Amnistia Internacional reportou mais de 300 mortos, mais de 3.000 feridos, e mais de 3.500 detidos arbitrariamente. Muitos permanecem presos até hoje. Estes protestos foram liderados inicialmente por jovens, desiludidos e desconectados pela falta de liderança e visão da FRELIMO, desfavorecidos e expropriados por um governo que insiste em priorizar os interesses de alguns sobre o futuro de todos. No entanto, cedo se tornou evidente que esta revolta tinha pouco de carácter generacional e muito de uma crise sócio-económica estrutural, juntando pessoas de todos os estratos sociais, reflectindo um descontentamento partilhado que transcendia idade, classe e background. Isto ficou ainda mais óbvio pela geografia dos protestos: claramente concentrados nos grandes centros urbanos; nas imediações de indústrias extractivas; e nos corredores de transporte.
O descontentamento popular era claramente um reflexo do paradigma neoliberal de desenvolvimento no país, assente no extractivismo e orientado para a exportação. No início de 2025, Mondlane regressou a Maputo, declarando-se o “presidente do povo” no lado de fora do terminal do aeroporto, numa cerimónia simbólica para os seus apoiantes. Seis dias depois, teve lugar a altamente securitizada tomada de posse de Chapo, na Praça da Independência, sem a presença da oposição e quase sem apoiantes; uma manifestação de poder ao invés de legitimidade.
O Dinheiro é que Manda
Mas esta crise política não é só sobre poder – é também, e talvez acima de tudo, sobre dinheiro. No coração das convulsões sociais em Moçambique está uma competição implacável pelo controlo dos vastos recursos naturais do país. O controlo do Estado pela FRELIMO não é
ideológico nem institucional; é económico. A dominação política oferece acesso aos contratos lucrativos, influência sobre os megaprojectos, e controlo sobre os fluxos de investimento estrangeiro e ajuda para o desenvolvimento. Neste contexto, as eleições não são um mecanismo para escolha democrática – são competições de alto risco para garantir as chaves para a exploração. O capital global e os seus agentes (incluindo as agências de ajuda externa, embaixadas, e acima de tudo, as empresas transnacionais) sabem muito bem que mãos apertar – e, conforme esperado, também jogaram um papel chave em legitimar a FRELIMO apesar do escândalo eleitoral, garantindo assim a continuação dos seus interesses económicos no país.
Este cenário molda directamente o caminho de desenvolvimento do país. Ao invés de promover um crescimento inclusivo ou construir sistemas resilientes e centrados nas pessoas, sucessivos governos têm insistido neste modelo extractivista que prioriza lucros de curto-prazo e interesses estrangeiros sobre o bem-estar nacional de longo prazo. Esta captura corporativa do Estado Moçambicano tem erodido sistematicamente as instituições públicas, transformando o processo de elaboração de políticas públicas num veículo para lucros privados, e subordinando a soberania nacional às demandas do capital transnacional. E não há lugar onde isto é mais claro que Cabo Delgado, onde reservas marinhas de gás 5 – lideradas por companhias como a TotalEnergies, ENI e ExxonMobil, e protegidas por exércitos nacionais e estrangeiros – transformaram a região num enclave militarizado, desalojando comunidades, alimentando o conflito, enquanto enriquecem ainda mais as elites.
A mesma lógica aplica-se a outros megaprojectos, como o planeado projecto de Mphanda Nkuwa – uma barragem hidroeléctrica ambientalmente devastadora e socialmente injusta que ameaça aprofundar a dependência do país em sistemas energéticos centralizados e orientados para a exportação. E depois há as areias pesadas, os rubis, as plantações de eucaliptos, e tantas outras empreitadas extractivistas que enchem os bolsos de poucos enquanto deixam a maioria dos Moçambicanos mais pobres, vulneráveis e cada vez mais despojados.
Este é o custo real de um regime político feito refém pelos tentáculos do capital transnacional organizado: um modelo de desenvolvimento que não é nem sustentável nem justo – e que prende o país em ciclos de dívida, dependência, destruição ecológica e instabilidade social.
Enquanto o poder político continuar a ser o guardião do privilégio económico, e o desenvolvimento for reduzido a uma planilha de megaprojectos, Moçambique continuará a andar aos tropeços, rico em recursos mas falido de justiça. E todos os capítulos do nosso passado nos ensinaram a mesma lição: sem justiça, não haverá paz.
Justiça e Responsabilização
O caminho em frente para Moçambique deve ir além dos gestos cosméticos de reforma que frequentemente têm sido usados para limpar a imagem do regime aos olhos da comunidade internacional. O que o país precisa não é de mais um processo de “diálogo” orquestrado pelos que estão no poder, enquanto continuamos a testemunhar perseguições seleccionadas, desenhadas para “acalmar as coisas”. A verdadeira justiça terá de ser centrada nas pessoas – enraizada nas experiências vividas por sobreviventes como o Orlando, naqueles que têm suportado o peso da repressão, da pobreza, da negligência, nas famílias dos que foram mortos, e nos milhares que permanecem desaparecidos ou injustamente detidos. Deve ser construída através de contar a verdade, da restituição, e do desmantelamento das estruturas que permitem a violência e impunidade do Estado. E para que seja significativa, terá que vir de mãos dadas com a responsabilização – a todos os níveis.
O processo deve reconhecer a profundidade das feridas abertas na sociedade bem como a natureza sistémica desta violência, que brota da necropolítica que emana da nossa política económica neoliberal. Só através da responsabilização genuína, da transformação sistémica radical e do desmantelamento da ordem neocolonial poderá Moçambique começar a reconstruir a confiança entre os cidadãos e o Estado. Só através da transformação estrutural do nosso paradigma de desenvolvimento – uma que rejeite a expropriação forçada e respeite o direito dos povos à sua auto-determinação, que cure e restaure a nossa relação sagrada com a terra, e que garanta o uso consciente dos nossos recursos para o bem comum das gerações actuais e futuras – seremos capazes de reconstruir uma nação unida e caminhar juntos em frente.
Enquanto isto permanecer uma miragem e o novo se parecer muito com o velho, enquanto Cardosos, Siba Sibas, Mataveles, Elvinos, continuarem a ser brutalmente assassinados à frente dos nossos olhos como um lembrete constante e pungente da nossa ausência de lei, enquanto Orlandos continuarem a ser torturados e presos por protestarem contra a usurpação das suas terras e o roubo dos seus votos, a possibilidade de revolta estará sempre um centímetro abaixo da superfície.
3- Hanlon, Joseph. 2025. Moçambique recolonizado através da corrupção.
https://drive.google.com/file/d/1jWmnGBxGXTQuKAd0Kr3ApmfvTqKPk6Sw/view
4- Feijó, João. 2025. Afinal “foi só Maputo”? – A geografia do protesto pós-eleitoral.
https://omrmz.org/destaque_rural/dr-324-afinal-foi-so-maputo-a-geografia-do-protesto-pos-eleitoral/5
5- https://ja4change.org/2020/06/16/report-release/
Fonte https://justica-ambiental.org/2025/10/31/capital-extractivo-e-o-punho-de-ferro/
