Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo oferece uma reflexão crítica e multidisciplinar sobre a emergência da justiça pelas próprias mãos na província de Cabo Delgado, Moçambique, à luz da falência securitária do Estado e da consequente ruptura do contrato social. Invocando uma abordagem dialogal entre Direito, Teopolítica, Filosofia Política e Ética Pública, discute-se o impacto da ausência estatal e a legitimação popular da violência privada como resposta à insegurança. A análise convoca o pensamento de figuras clássicas e contemporâneas – de Agostinho de Hipona a Gilles Cistac, de João Calvino a Jaime Macuane – para interpelar os limites e possibilidades de uma governança justa, legítima e responsável. O ensaio adverte para os riscos de um colapso normativo e institucional, caso se mantenha a actual desconexão entre Estado e sociedade.
Palavras-chave:
justiça informal, colapso estatal, contrato social, direitos humanos, teopolítica, segurança, Moçambique.
Glossário
Justiça pelas próprias mãos: Forma de justiça extralegal em que indivíduos ou comunidades aplicam punições sem recorrer às instituições estatais formais.
Contrato Social: Conceito filosófico segundo o qual o Estado surge de um acordo tácito entre os indivíduos para garantir protecção mútua, em troca de alguma renúncia de liberdades individuais.
Teopolítica: Intersecção entre teologia e política, analisando o papel de Deus, da religião e da ética bíblica na ordenação social e na legitimidade do poder.
Linchamento: Execução sumária e violenta de uma pessoa por um grupo, sem julgamento legal ou devido processo.
Estado falhado (failed state): Estado que já não cumpre as suas funções básicas, como a segurança, justiça e prestação de serviços públicos essenciais.
Governança: Conjunto de processos e instituições através dos quais as decisões são tomadas e implementadas, com enfoque na legitimidade, transparência e responsabilidade.
Segurança humana: Paradigma que vai além da segurança militar, incluindo protecção contra fome, doenças, violência e repressão.
Desobediência civil: Recusa pública, consciente e não violenta em obedecer a determinadas leis ou ordens de um governo, em protesto contra injustiças percebidas.
Presunção de inocência: Princípio jurídico segundo o qual todo indivíduo é considerado inocente até que se prove sua culpa por meio de um julgamento justo.
Justiça restaurativa: Modelo de justiça que visa reparar o dano causado por um crime por meio do diálogo entre vítima, infractor e comunidade.
I. Introdução: Quando a Justiça se Faz com as Próprias Mãos
Na esteira das incursões armadas e do abandono estatal em Cabo Delgado, a população local tem vindo a tomar a justiça nas suas próprias mãos – um fenómeno que, embora condenado juridicamente, se reveste de nuances éticas, teológicas e políticas. À luz do pensamento de Thomas Hobbes e John Locke, tal reacção popular pode ser lida como ruptura do pacto civilizacional, em que o Estado deixa de exercer o seu papel fundador de garantidor da segurança.
Na epístola aos Romanos (13:1-4), o Apóstolo Paulo defende que toda autoridade é constituída por Deus e que o governante é ministro da justiça. Mas que sucede quando tais ministros, como em Moçambique, pactuam com a omissão, a indiferença ou mesmo a cumplicidade com o mal? A teopolítica de João Calvino e a ética resistente de Martinho Lutero autorizam, nesses casos, a desobediência civil. De igual modo, Agostinho de Hipona argumentava que “sem justiça, os Estados não passam de bandos de ladrões” (De Civitate Dei).
O presente artigo propõe-se a explorar, com vigor académico e cívico, os contornos desta justiça paralela como sintoma de um Estado falido e de uma sociedade em autodefesa, em diálogo com pensadores que, de Tomás de Aquino a Gordon Haddon Clark, problematizam o justo, o legítimo e o necessário em tempos de exceção.
II. Cabo Delgado: Entre o Vazio do Estado e a Autojustiça Popular
O ataque de 27 de Julho ao Posto Administrativo de Chiúre-Velho, perpetrado por insurgentes que, sem resistência, realizaram um comício jihadista, incendiaram uma viatura e raptaram um civil, revela o abismo entre o Estado formal e o real. A ausência total de efectivos das Forças de Defesa e Segurança (FDS) naquela localidade remete-nos à célebre advertência de Gilles Cistac: “um Estado que não está onde deve, não é um Estado de Direito”.
Dois dias depois, a 29 de Julho, na aldeia de Nivenevene, dois indivíduos não identificados foram linchados até à morte. O mesmo destino teve, dias antes, um homem acusado sumariamente de ligação ao grupo terrorista. Não houve julgamento, inquérito, nem presunção de inocência – apenas a aplicação crua e imediata da justiça popular, num cenário onde o Estado não existe senão na sua ausência.
Aqui, a análise de Vincent Cheung sobre a falência moral dos governos se faz presente: “Se o Estado se torna, de forma sistemática, um agente do mal ou omisso na sua repressão, a justiça moral e teológica obriga à resistência ética.”
III. O Contrato Social em Ruína: Entre Hobbes, Rousseau e a Teocracia da Desesperança
Thomas Hobbes, no Leviatã, justifica a concentração do poder soberano como única forma de evitar a guerra de todos contra todos. Quando esse soberano, porém, se demite de seu papel, volta-se ao estado natural. Jean-Jacques Rousseau defende que o contrato social visa garantir a liberdade e a segurança dos cidadãos; quando o pacto é quebrado unilateralmente pelo Estado, o povo readquire o direito à autodefesa.
Já John Locke, na sua teoria da revolução legítima, afirma que “o povo tem o direito de remover ou resistir ao governo que falha no seu dever primário de proteger os direitos à vida, liberdade e propriedade”. A prática da justiça pelas próprias mãos, nesse contexto, emerge como expressão desesperada de uma população que já não reconhece autoridade legítima no poder constituído.
IV. O Limiar Teopolítico: Justiça Divina ou Vingança Profana?
Tomás de Aquino, na Suma Teológica, alerta que a justiça deve sempre ser temperada pela razão e pela caridade. Quando esta se transforma em vingança colectiva, há um desvio do bem comum para a barbárie. Contudo, João Calvino lembra que “a tirania é um sinal do juízo divino sobre um povo, mas não impede a resistência justa, quando feita com discernimento”. Gordon Haddon Clark e Vincent Cheung reforçam que a cosmovisão cristã não é pacifista, mas sim realista quanto ao uso legítimo da força quando o mal se institucionaliza.
V. O Estado Pós-Colonial e o Vazio de Legitimidade
O jurista moçambicano Gilles Cistac denunciava a centralização e a partidarização do Estado como raízes da sua ilegitimidade. Jaime Macuane, por sua vez, alerta que o poder político em Moçambique há muito divorciou-se da sociedade civil, governando por imposição e não por consenso. A justiça popular que se alastra em Cabo Delgado é, neste sentido, um sintoma tardio de uma patologia que há muito consome o Estado moçambicano: a ruptura da confiança cívica.
VI. Justiça Popular ou Justiça de Emergência? Os Riscos de um Colapso Normativo
A proliferação de linchamentos sob suspeitas de terrorismo, sem qualquer garantia processual, deve ser vista com preocupação. Ainda que surja como mecanismo de sobrevivência, tal prática pode instituir uma cultura de ilegalidade e arbitrariedade difícil de reverter. Como nos adverte Michel Foucault, quando o Estado perde o monopólio da violência legítima, instala-se um “regime de verdade produzida pela força”.
Epílogo: Entre o Clamor Popular e o Silêncio Estatal — Um Futuro Possível?
A história de Cabo Delgado é o espelho partido de uma Nação em luta consigo mesma. No reflexo distorcido da justiça popular, não se encontra apenas barbárie ou irracionalidade colectiva, mas um grito ético-político por reconhecimento, segurança e dignidade. O linchamento de suspeitos, por mais criticável que seja, é também uma forma primitiva de justiça social perante a ausência quase ontológica do Estado.
Aos juristas que insistem na letra fria da lei, urge lembrar que o Direito não pode ser um monumento à indiferença. Aos teólogos, que o mandamento de “não matarás” não é incompatível com a ética da resistência contra o mal institucionalizado. Aos governantes, que o silêncio e a omissão perante o sofrimento popular são, em si mesmos, formas de violência.
Como Apóstolo Paulo escreveu na sua segunda epístola aos Coríntios, “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Coríntios 3:17). Essa liberdade, no contexto de Cabo Delgado, passa pela restituição da justiça, da segurança e da esperança.
Referências Bibliográficas
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