Por Tiago J.B. Paqueliua
A mais recente declaração do Tenente-General na reserva e politólogo Elias Dhlakama, membro sénior da RENAMO, aquando da IV Conferência Nacional da ACOLDE, em 5 de Junho de 2025, assume particular relevância no quadro da crise interna que assola o segundo maior partido político moçambicano. Elias Dhlakama foi peremptório ao afirmar que “seria infantilidade negar que a RENAMO está nos seus piores momentos”, sublinhando que a agremiação vive uma fase de “movimentação estranha” e “convulsão” que, a seu ver, compromete a coesão e unidade partidária.
A pertinência desta constatação transcende o mero diagnóstico conjuntural e convida à análise de uma patologia crónica e transversal ao sistema partidário moçambicano: a síndrome da imunodeficiência político-partidária, caracterizada pela concentração do poder nos líderes, a fragilidade institucional, a opacidade decisional, a ausência de mecanismos internos eficazes de renovação e o culto da personalidade.
Esta síndrome, longe de ser um exclusivo da RENAMO, espelha-se nas práticas da FRELIMO e outras formações partidárias, afecta transversalmente o espectro político nacional.
No seio da RENAMO, esta fragilidade não teve início com Ossufo Momade. A título de exemplo, o próprio Afonso Dhlakama — frequentemente idolatrado como líder carismático — manifestava já sinais de alergia aos congressos, resistência à colegialidade, e tendência para decisões unipessoais. A sua liderança foi alvo de críticas internas por alegadas aproximações oficiosas e excessivamente cordiais com a FRELIMO, despoletando dissidências na base das quais surgiu o MDM, e mais tarde, foi forçado pelas bases a acantonar-se no exílio político, primeiro na Rua dos Sem Medo, na cidade de Nampula, e depois em Santunjira, nas matas da Gorongosa, província de Sofala, com vista a purgar seu costumeiro ócio político, e solucionasse a integração social de ex guerrilheiros.
Essas fragilidades encontram ressonância no desfecho trágico dos Acordos de Paz de Roma (1992), cujo insucesso em institucionalizar um quadro de reconciliação nacional credível, se traduziu em processos de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR) profundamente falhados.
As dissensões internas da RENAMO foram, desde então, catalisadas por uma sensação de tribalismo — embora habilmente camuflado — e por uma gestão partidária personalista que reduziu a organização à figura do seu líder de turno.
A presença de Venâncio Mondlane nos quadros da RENAMO, por exemplo, amplificou tensões pré-existentes, devido a promessas de liderança que Afonso Dhlakama lhe concedeu, como era apanágio, em desrespeito pelos princípios agremiativos. Afonso Dlakhama, frequentemente indicava Secretário-Geral de forma discricionária, criando um precedente institucional, que após sua morte, veio a dificultar o exercício legítimo de liderança por parte de Ossufo Momade, que tentaria replicar esse padrão, o que deflagrou num cerrado pujilato com seus críticos domésticos, tendo optado pelo golpe baixo de perseguição a quadros como Manuel Bissopo, Elias Dhlakama, Mariano Nhonho, Anselmo Vítor, Vitano Singano, entre outros, — muitas vezes, segundo relatos, com conivência da FRELIMO.
Outro traço comum entre a RENAMO e a FRELIMO é o revisionismo histórico e simbiose. A RENAMO à todo o custo se empenha em embelezar, manipular, ou mesmo ocultar, aspectos essenciais de sua génese histórica, numa tentativa de construir mitos fundadores convenientes e consolidar legitimidades questionáveis.
No caso da FRELIMO, é comum e sistematicamente propagada a ideia de que Eduardo Mondlane teria sido o fundador absoluto do movimento. No entanto, a tradição oral e os registos históricos desmentem essa versão, e apontam que a Frente de Libertação de Moçambique, não nasceu da fusão de movimentos, mas sim, da deliberação unânime de três organizações nacionalistas existentes — a MANU, a UNAMI e a UDENAMO — em constituírem uma frente única de luta contra o colonialismo português. Essas organizações não deixaram de existir automaticamente, mas passaram a canalizar os seus esforços sob a nova estrutura unificada, a qual foi nomeada FRELIMO por Adelino Gwambe, então presidente da UDENAMO.
Portanto, longe de uma fusão orgânica, o que se verificou foi um pacto estratégico, uma frente unitária com vistas à eficácia na luta anticolonial. Negar o protagonismo dos fundadores dessas organizações e por sacanagem acusá-los como anti-revolucionários e friamente assassiná-los — e centrar a narrativa na figura de Eduardo Mondlane como “pai” do movimento é, na prática, uma operação de ocultação histórica e uma tentativa de hegemonizar a memória da luta de libertação.
De modo semelhante, a RENAMO tem promovido a versão de que André Matsangaíssa teria sido seu fundador, apagando o papel decisivo de Ivo Fernandes, cuja acção foi fundamental na estruturação inicial do movimento. Ao repetir essa narrativa, a RENAMO perpetua o mesmo tipo de revisionismo que critica no seu adversário histórico.
Essas distorções não são inocentes: operam como instrumentos de legitimação simbólica do poder, como forma de blindagem moral das lideranças actuais, e como mecanismo de supressão de memórias plurais e divergentes. O resultado é uma cultura política que privilegia o dogma sobre a crítica, o mito sobre a análise, e o personalismo sobre a institucionalidade.
Bibliografia
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