Se um carpinteiro preferir ficar calado enquanto trabalha, tudo bem. Se alguém que viaja connosco no chapa prefere não dizer nada, também tudo bem. Esse é um tipo de silêncio que não faz mal a ninguém. Ou melhor, pode fazer mal, mas não é tão grave ao ponto de ser moralmente mau. Por exemplo, se eu sei que no virar da curva na estrada nacional número 1 há uma árvore caída, e não aviso os que se cruzam comigo no outro sentido, esse silêncio é moralmente reprovavável. Já não o seria se ao virar da curva estivesse a polícia de trânsito a controlar a velocidade. Desejar que quem excede a velocidade permitida seja punido é uma maneira de reafirmar que excesso de velocidade põe em risco vidas humanas.
O silêncio pode corresponder a várias normas que fazem dele moralmente bom ou mau. Por exemplo, o silêncio que se exige nos hospitais corresponde a uma norma jurídica. O silêncio que se exige quando o marido volta à casa tarde e não quer despertar a esposa para não explicar por onde andou (ou melhor, para não a incomodar no seu sono) corresponde a uma norma de prudência ou até de protecção da integridade física. O silêncio que um militante dum partido observa em resposta à proibição de se falar de assuntos partidários fora das estruturas corresponde a uma norma disciplinar.
Todos estes silêncios são legítimos, mas têm uma característica particular: podem mudar. Hoje pode ser prudente não falar ao voltar tarde à casa, e amanhã (de preferência com outra mulher) pode não ser. Mesmo a norma disciplinar pode ser válida hoje e amanhã mudar porque o partido talvez decidiu que lhe faz bem que os membros usufruam em pleno da liberdade de expressão. É tudo moral porque orienta a acção – isto é, diz o que é bom fazer e o que é mau fazer, ou não fazer. Não há aí nenhuma hieraquia que faria de qualquer dessas normas superior às outras.
Só que aqui há um pequeno problema. As normas de silêncio que descrevi até aqui são de pouca consequência. Para uma norma ser de facto norma no sentido da moral ela tem que ser superior a todas as outras. Por exemplo, a proibição de matar um ser humano é esse tipo de norma. Isso não significa que não haja circunstâncias em que isso possa ser permitido – em legítima defesa, em guerra, em cumprimento duma lei (pena de morte), etc. Essas excepções não cancelam a moralidade da norma da proibição de matar. Reafirmam-na na medida em que exigem razões muito fortes que, mesmo assim, permitiriam a qualquer um de nós de recusar fazer. É por isso que existe a objeção de consciência, por exemplo.
A questão que se coloca é de saber que tipo de silêncio, e quando, ele é bom ou mau do ponto de vista moral. A minha sugestão é que o silêncio político é mau quando impede quem se cala de assumir uma obrigação cívica. Defino a obrigação cívica como o dever de agir no interesse público. Se eu sei que no meu círculo de amigos alguém está a planear assaltos a postos policiais ou a hospitais, tenho a obrigação cívica de dizer a esses amigos para não fazerem isso e, se não me ouvirem, de avisar as autoridades competentes. Os meus amigos esperam, legitimamente, lealdade da minha parte. Mas, lá está, nenhum dever de lealdade é superior ao meu dever cívico de me opôr ao que põe em causa o bem público.
É verdade que se tenho amigos que andam com esse tipo de planos, eles são pessoas capazes de tudo. Podem me fazer mal. Podem fazer mal à minha família. Podem, até, inventar histórias a meu respeito para me porem mal com as autoridades e, desse modo, me silenciarem. Podem, inclusivamente, queimar a minha casa. Nada disso diminui a minha obrigação cívica de colocar o bem público acima de tudo. De resto, qualquer dano que me fosse causado pelos meus amigos seria o preço que estaria a pagar por ser tão burro e imprudente na escolha de amizades.
Só que, prontos, não podemos ser todos heróis. Havia muitos brancos que não concordavam com o Apartheid ou com a escravatura. Alguns se opuseram, outros (muitos) ficaram calados. Esses que ficaram calados tiveram de assumir essa vergonha para sempre. Agora, num contexto político em que quem detém o poder o exerce de forma arbitrária – ou abusa dele – temos todos a obrigação cívica de nos opormos quebrando o silêncio. Se eu Zé-Ninguém não tiver a coragem de o fazer, estou a falhar moralmente, mas essa falha é até certo ponto compreensível e desculpável. Mas se alguém que faz parte do grupo dos que exercem o poder de forma arbitrária e o abusam também fica calado, há aí um problema moral grave. Ou essa pessoa concorda com isso, ou acha que não é assim tão grave.
O único que não pode dizer, contudo, é que não concorda, mas não pode falar porque a malta à qual ele pertence tem o hábito de silenciar pessoas, vingar-se ou privar os que exigem rectidão moral de benefícios materiais. E se a sua condição de membro dessa malta trouxe benefícios materiais a essa pessoa, então pior ainda. É como se ela estivesse a dizer que o seu conforto pessoal – custe o que custar à sua consciência – está acima do bem público. Este é o silêncio dos bons de que falava Martin Luther King Jr., portanto, daqueles que quebrando-o prestariam um valioso serviço ao bem comum.
O distanciamento público de Samito Machel e de Mulweli Ribeiro em relação ao que eles consideram incorrecto na actuação de membros do seu partido honra-os como cidadãos. O silêncio de todos os outros não os desonra necessariamente. Mas mostra a corrupção moral do partido. Mostra que ser membro desse partido é que é o problema. Sei que é fácil para mim dizer isso – porque não sou membro do partido, ainda que me sinta simpatizante. Mas o problema não é quem está fora. É quem voluntariamente decidiu ser membro desse partido, mas opta por não quebrar o silêncio perante algo que potencialmente prejudica o bem público. Isso é ser parte do problema, não da solução. E nem adianta, já agora, aplaudir as igrejas quando fazem isso. Elas estão a ser coerentes. Aquele que é membro e não diz nada é que não está a ser coerente.
A pergunta que todo o membro da Frelimo, sénior ou não, deve colocar a si próprio é se está preparado para assumir responsabilidade por tudo quanto possa vir a acontecer. O discurso de Venâncio Mondlane está cada vez mais inflamado e por mais apelos que ele faça à ordem há um potencial enorme de caos e desordem que ele não vai poder controlar. Mas a responsabilidade por isso não será apenas dele. Será também daqueles que decidiram ficar calados numa altura em que a sua consciência é chamada a vir socorrer o bem comum. Os que gritam “ladrões, ladrões” não se referem apenas aos que colocaram a mão na massa. Referem-se a todos que fazem parte da malta.
A moral do silêncio é quando o silêncio é imoral. É quando se torna cúmplice.