O mais recente livro de Joseph Hanlon, intitulado “Moçambique Recolonizado através da Corrupção: Como o FMI criou um Estado Oligárquico” (2025), publicado pela Ethale Publishing, constitui uma das análises mais contundentes e provocadoras sobre a economia política de Moçambique contemporâneo. A sua versão electrónica está a circular como vento pelos círculos intelectuais do país. Li-o em dois dias e com uma avidez impressionante, de tão bem escrita que é a prosa, mesmo com algumas gaffes de tradução. E li, igualmente, alguns outros textos que já estão a ser publicados por alguma classe intelectual moçambicana, também em reacção alucinada ao livro de Hanlon. Vou dividir este texto em duas partes: uma sobre o conteúdo do próprio livro, e outra sobre uma das mais contundentes críticas ao livro, da autoria de Elísio Macamo.
- Sobre o livro de Joseph Hanlon
O autor, sobejamente conhecido pela sua longa experiência de investigação sobre o processo político em Moçambique, propõe uma leitura crítica e historicamente fundamentada da transição do país do socialismo para o capitalismo neoliberal, argumentando que tal processo não representou uma emancipação económica, mas antes uma recolonização através da corrupção. Nesse contexto, Hanlon estrutura a sua argumentação em torno de um caso emblemático: o assassinato de Siba Siba Macuácua, em 2001, como símbolo da corrupção sistémica e da captura do Estado moçambicano por elites políticas e económicas alinhadas aos interesses externos. A partir deste episódio, o autor constrói uma narrativa que denuncia a cumplicidade entre o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a elite da Frelimo no processo de destruição das bases produtivas nacionais e na consolidação de um Estado oligárquico.
Como ponto de partida, o livro avança a hipótese de que as reformas neoliberais impostas ao país, sob o pretexto de promover o “ajustamento estrutural” da sua economia e a sua consequente “modernização”, criaram as condições para o surgimento de uma nova classe dominante: os oligarcas moçambicanos, cuja acumulação assenta-se em captura de rendas, em privatizações fraudulentas, no tráfico de influências e na aliança com o capital transnacional. Há disponível, para quem estuda ou se interessa sobre estudos de desenvolvimento, literatura obesa sobre essas práticas um pouco por toda a África. A mais crítica advoga, invariavelmente, que tais programas de ajustamento estrutural pelo FMI não foram um mero conjunto de políticas técnicas, mas um processo deliberado de reestruturação da inserção periférica da região na economia mundial, facilitado pela condicionalidade da dívida e pela destruição de alternativas desenvolvimentistas. Isso não interessa ao presente debate, para já. O que mais nos deve interessar é o que proponho abaixo.
1.1. O contributo analítico de “Moçambique Recolonizado através da Corrupção” para a compreensão da economia política moçambicana
É minha percepção que o contributo mais relevante deste livro reside na sua capacidade de articular a história, a economia e a política para explicar a formação da estrutura económica contemporânea de Moçambique. Não para intelectuais já consagrados, frise-se; mais para os pequenos pensadores jovens que estão a surgir como cogumelos pelo país adentro. A nossa juventude crescentemente crítica que precisa de aprender a usar informação baseada em evidências – e não apenas em textos abstractos de alguns dos nossos célebres professores – para contribuir activamente no debate político sobre o nosso país.
Neste livro, Hanlon descreve Moçambique como um Estado rentista, extremamente dependente de mega-projectos estrangeiros que têm fracas ligações à economia local e sem impacto significativo na redução da pobreza dos seus cidadãos. Nada disso é novidade, naturalmente, mas eu penso que o autor vai agora mais longe: ele identifica o papel activo das instituições financeiras internacionais na engenharia desse modelo de dependência. Temos todos de perceber muito bem isto e começar a fazer a devida crítica a essas instituições, a partir da nossa condição de cidadãos que são vítimas directas desse conluio organizado. Com efeito, tudo aquilo que é chamado de ajuda ao desenvolvimento, cooperação internacional para o desenvolvimento ou nomes do género nada mais é do que roubalheira concertada da nossa riqueza e recursos públicos entre instituições externas e as nossas elites políticas e económico-financeiras.
Segundo Hanlon, usando extensivo rigor documental, o FMI sabotou o nosso sector produtivo e financeiro ao longo dos anos – via privatizações, liberalização financeira e cortes na despesa pública, para depois facilitar a entrega dos nosso activos estratégicos a interesses externos. Através de um notável encadeamento histórico, o autor ligou as novas formas de dominação económica de Moçambique às antigas lógicas coloniais das “companhias majestáticas”. Assim sendo, as empresas estrangeiras de mineração, energia e agricultura que hoje actuam no nosso país reproduzem o mesmo padrão extractivista e dependente do período colonial, com a diferença de agora operarem sob o discurso da “cooperação” e do “investimento” que é promovido como política de Estado pelo nosso próprio Governo. É a isso que o autor chama de nova colonização de Moçambique.
1.2. A crítica moral de Hanlon à cumplicidade dos nossos governantes
Além da análise económica acima, o autor propõe uma reflexão ética e política sobre o papel das elites moçambicanas e da comunidade internacional nesse estado de coisas. O silêncio cúmplice dos “cães de guarda” – o FMI, o Banco Mundial e os doadores bilaterais – perante a corrupção e os assassinatos políticos que foram acontecendo às vozes mais sonantes dessa roubalheira (como o jornalista Carlos Cardoso e o banqueiro Siba-Siba Macuácua) é interpretado como uma forma de violência estrutural e recolonização simbólica. Moçambique, segundo o autor, foi sendo “recompensado” pelos doadores justamente quando os crimes financeiros e políticos se multiplicavam, porque o essencial era garantir a estabilidade de um regime neoliberal subordinado.
Foi assim que foi criada uma “burguesia nacional” desprovida de projecto histórico próprio, limitando-se a intermediar os interesses imperiais dos “cooperantes” e doadores externos. Assim sendo, o discurso tecnocrático do “desenvolvimento”, da “boa governação” e da “luta contra a pobreza” – pilares retóricos das instituições de Bretton Woods – vão funcionando como um dispositivo de poder que naturaliza a nossa subordinação económica e despolitiza todas as suas contradições estruturais. O caso das “dívidas ocultas”, revelado em 2016, constitui uma confirmação dramática da tese de Hanlon. Aquele escândalo envolveu empréstimos fraudulentos no valor de mais de 2 mil milhões de dólares, contraídos secretamente por empresas públicas moçambicanas com aval do Estado, destinados alegadamente a projectos de segurança marítima mas utilizados para enriquecimento ilícito de elites políticas e empresários externos. Com efeito, a cumplicidade de bancos internacionais, auditores e credores neste processo ilustra o argumento de Hanlon sobre a articulação sistémica entre a cultura de corrupção dentro de Moçambique e os interesses financeiros globais.
1.3. A mais-valia do livro
Como disse, “Moçambique Recolonizado através da Corrupção” é uma obra de fundamental relevância para quem quer compreender, com detalhes e factos, os dilemas estruturais da economia política moçambicana contemporânea. Nela, Hanlon demonstra que a corrupção em Moçambique não é apenas um desvio moral ou individual, mas um mecanismo funcional ao modelo económico imposto ao país, que perpetua a dependência, a desigualdade social e o nosso subdesenvolvimento. A obra aponta, sem papas na língua, para os principais culpados de tudo isso: os capitalistas estrangeiros e os nossos governantes.
No entanto, e mais do que uma denúncia, trata-se de uma descrição informada do processo da nossa recolonização pela via financeira, sendo a sua leitura é indispensável para estudantes, investigadores, economistas, cientistas sociais e demais entusiastas interessados em compreender o fracasso do “milagre moçambicano” – mesmo riquíssimo de gás e valiosos recursos minerais – e os desafios de reconstruir um projecto nacional soberano e inclusivo. Em suma, a obra coloca-nos perante questões muito importantes para o nosso futuro colectivo como país: é possível romper com este ciclo de dependência no quadro das instituições e regimes de governação global existentes? Que alternativas concretas podem ser mobilizadas para promover uma genuína descolonização económica? Como reconstruir capacidades produtivas nacionais em contexto de hegemonia neoliberal e inserção periférica nos mercados globais?
Evidentemente, Hanlon não oferece respostas fáceis, mas o seu trabalho constitui um contributo essencial para reabrir o debate sobre as nossas escolhas de desenvolvimento, a margem de manobra para o exercício da nossa soberania e como se pode alcançar a justiça social em Moçambique. Recomendo vivamente a sua leitura, sobretudo num momento em que o país enfrenta renovadas e multimilionárias pressões extractivistas como as da bacia do Rovuma.
- Aos críticos de Hanlon
Li um artigo do sociólogo Elísio Macamo sobre o livro de Joseph Hanlon, onde essencialmente apresenta-se uma crítica metodológica à “denúncia moral” em detrimento de uma “análise política rigorosa”. Contudo, uma leitura atenta revela que o texto de Macamo incorre em fragilidades analíticas mais graves do que aquelas que identifica em Hanlon. Mais do que uma crítica científica, o artigo configura uma postura epistemológica conservadora que desqualifica o conhecimento crítico-militante, naturaliza estruturas de dominação e reproduz uma falsa dicotomia entre compromisso político e rigor intelectual. Esta parte do meu texto procura identificar e problematizar essas limitações.
2.1. A falsa dicotomia entre denúncia e análise
A crítica central de Macamo assenta na alegada oposição entre denúncia e análise, sugerindo que Hanlon privilegia, no seu livro, a primeira em detrimento da segunda. Esta dicotomia, contudo, é epistemologicamente insustentável e revela uma compreensão restritiva do que constitui conhecimento válido em ciências sociais. Já dizia Bourdieu que toda prática científica é simultaneamente técnica e política, e que a neutralidade axiológica weberiana, frequentemente invocada como ideal regulador, nunca significou indiferença moral ou abstenção normativa, mas sim clareza sobre os pressupostos valorativos da investigação. Nesse sentido, a denúncia não é antítese da análise; pode ser a sua consequência lógica quando a investigação revela mecanismos sistemáticos de dominação e exploração.
Wright Mills, na sua célebre defesa da “imaginação sociológica”, argumentou que a vocação das ciências sociais é precisamente traduzir problemas subjectivos em questões públicas, politizando aquilo que é apresentado como natural ou inevitável. Hanlon, ao articular casos individuais de corrupção (como o assassinato de Siba Siba) com estruturas sistémicas de poder com lógicas internas e internacionais, está precisamente a exercer essa imaginação sociológica. Reduzir este procedimento a “moralismo” é desconhecer a tradição crítica das ciências sociais que têm na denúncia o seu ponto de partida – e de chegada, já agora.
Outrossim, Macamo acusa Hanlon de transformar a política num “teatro de culpados e inocentes”, mas não explica por que razão identificar responsabilidades concretas – as do FMI, do Banco Mundial e das nossas elites nacionais – seria incompatível com uma análise estrutural. Não será um esforço nebuloso de invisibilização de agentes e mecanismos específicos para naturalizar esses processos viciosos, convertendo processos históricos deliberados em “forças analíticas impessoais” sem sujeitos identificáveis?
- 2. O problema da agência local
Macamo critica Hanlon por alegadamente “desresponsabilizar a agência local” ao enfatizar pressões externas. Este argumento merece escrutínio cuidadoso, pois contém ambiguidades perigosas sobre o que significa responsabilidade em contextos pós-coloniais. Primeiro, Macamo não demonstra que Hanlon ignora completamente a agência local; apenas afirma isso. Uma leitura generosa de Hanlon – para quem de facto leu o livro sem pressa de identificar nele anomalias e patologias – sugere que ele identifica uma relação de cumplicidade estrutural entre actores externos e elites nacionais, o que não equivale a negar agência, mas a contextualizá-la dentro de assimetrias de poder concretas.
Segundo, o argumento de Macamo pode inadvertidamente reproduzir o que alguns cientistas políticos chamam de “armadilha da responsabilização”: a tendência de atribuir exclusivamente a actores africanos a responsabilidade por crises que têm origens estruturais na economia política global. Esta postura converte problemas de inserção periférica, dependência financeira e condicionalidade externa em questões de “escolhas erradas” ou “má governação” local, despolitizando assim a arquitectura do poder global. Deve ser uma limitação analítica de sociológos sem noções aprofundadas de relações internacionais ou que nunca aprenderam a pensar geopoliticamente? Ademais, quando Macamo afirma que a elite moçambicana “não é apenas produto do FMI, mas também resultado de lógicas internas de redistribuição”, ele está correcto, mas formula a questão como se Hanlon negasse isso. O que Hanlon argumenta, e é aqui que reside a sua contribuição, é o seguinte: essas “lógicas internas” foram profundamente reconfiguradas pela imposição de reformas neoliberais, que criaram novas oportunidades de apropriação privada mediante privatizações, desregulação e destruição de capacidades estatais. Não se trata de negar agência local, mas de compreender como essa agência opera dentro de condicionalismos estruturais específicos.
Além disso, há uma outra acusação macamiana: segundo as suas próprias palavras, a “insistência na colonização infantiliza-nos”. Deveras problemático, isso. Com efeito, o argumento replica a retórica conservadora que desqualifica análises estruturais sobre a dominação colonial e o imperialismo como vitimização ou negação de responsabilidade. Afinal, falar de colonialidade do poder não infantiliza, mas precisamente devolve capacidade analítica aos sujeitos subalternos para compreenderem as estruturas que os oprimem – condição necessária para as transformar. É por isso mesmo que eu disse, no início da recensão ao livro de Hanlon, que a sua leitura é providencial para quem quer aprender a falar desses assuntos com fontes baseadas em factos, não em elucubração retórica pretensamente sociológica.
- 3. A acusação de superficialidade: afinal, quem define o que é “análise rigorosa”?
Macamo acusa Hanlon de usar conceitos como “oligarquia”, “cleptocracia” e “recolonização” como “metáforas morais, não como conceitos analíticos”. Esta crítica levanta questões sobre quem tem autoridade para definir o que conta como análise séria, no contexto da nossa intelectualidade, e que critérios são mobilizados para essa avaliação. Eu penso que a tradição da economia política crítica (de onde Hanlon escreve, presumo), sempre privilegiou a capacidade explicativa do que a sofisticação formal.
Num outro desenvolvimento, quando Macamo reclama “mediações teóricas” que mostrem “como a dependência financeira se traduz institucionalmente”, ele está, na verdade, a reclamar uma forma específica de fazer ciência social que não é universalmente aceite como superior. Hanlon, formado na tradição do jornalismo investigativo e da economia política, privilegia a documentação empírica rigorosa e a identificação de padrões sistemáticos de poder. Este não é um método inferior, é apenas um método diferente. O Elísio Macamo tem de trazer o seu próprio, para que a grande plateia faça a devida avaliação e comparação. Catalogar e adjectivar a produção de outro sem fazer melhor é um exercício vil e bastante revelador de quem o promove. Ademais, Macamo não oferece exemplos concretos de como uma análise “não superficial” deveria proceder. Ele diz que Hanlon “observa o visível mas não analisa as formas de racionalidade política”, sem especificar que racionalidades são essas nem demonstrar que Hanlon as ignora completamente. Novamente, essa vagueza retórica serve para desqualificar sem ter de demonstrar.
- 4. O conservadorismo implícito em Macamo
Uma das fragilidades mais cintilantes da crítica de Macamo é a tendência implícita para naturalizar as estruturas de dominação que Hanlon denuncia. Quando afirma que “o FMI foi cúmplice, não criador”, Macamo parece sugerir que as elites locais já estavam a capturar o Estado antes do ajustamento estrutural, portanto as reformas neoliberais apenas facilitaram algo que já existia. Esse argumento contém uma falácia de falsa equivalência. Uma coisa é reconhecer tendências patrimonialistas em Estados pós-coloniais africanos como Moçambique; outra, bem diferente, é ignorar que as políticas do FMI e do Banco Mundial transformaram qualitativamente essas tendências, convertendo-as num sistema integrado de acumulação privada articulado com o capital transnacional. Afinal, e há bastante literatura especializada que corrobora isso, o ajustamento estrutural não apenas “aproveitou” dinâmicas locais em países como o nosso, mas activamente destruiu instituições desenvolvimentistas e criou novas arquitecturas legais e regulatórias que facilitaram a apropriação de riqueza pública pelos nossos algozes governamentais. Por conseguinte, ignorar esta transformação qualitativa é adoptar uma postura funcionalista que trata a corrupção como um fenómeno cultural ou endógeno nosso, em vez de a historicizar como parte de processos específicos de reestruturação e de intervenção capitalista.
- 5. A ironia da acusação macamiana: quem realmente está a “vender problemas” em Moçambique?
A conclusão do artigo de Macamo é particularmente reveladora das suas fragilidades. Ele afirma que o livro de Hanlon “é um bom manifesto para quem quer criar uma ONG para viver da venda dos problemas moçambicanos aos doadores”. Essa é uma acusação grave, mas também profundamente irónica. Primeiro, porque Hanlon tem décadas de trabalho crítico sistemático sobre Moçambique – que o próprio Macamo reconhece no texto –, muito dele incomodando precisamente os doadores que Macamo sugere que ele serve. A sua crítica às dívidas ocultas, ao papel do FMI na privatização predatória e à cumplicidade dos doadores com a corrupção endémica em Moçambique são incompatíveis com a caracterização de “vendedor de problemas” à indústria da ajuda. Nesse sentido, quem realmente está mais próximo da “venda de soluções” aos doadores: Hanlon, que denuncia a cumplicidade estrutural entre instituições financeiras internacionais e as nossas elites corruptas, ou académicos que reclamam “análise rigorosa” sem comprometimento normativo?
Segundo, a acusação revela um elitismo epistemológico preocupante. Macamo sugere que textos acessíveis e mobilizadores como o do Hanlon são inerentemente menos valiosos do que análises densas reservadas a especialistas. Eu pesno que o Hanlon não está a escrever para si, ilustre Macamo. Nem para os seus pares. Ele está a escrever para um público mais alargado, muito interessado em factos e evidências com poder normativo suficiente para formar opinião e instigar acção. Afinal, sói dizer-se que as ciências sociais têm responsabilidade de comunicar com públicos amplos e contribuir para a democratização do conhecimento. Não para convencer os sabichões.
Em suma…
A crítica de Macamo, no artigo que escreveu em reação ao livro do Hanlon, é mais performativa do que substantiva; mais interessada em demarcar posição de superioridade intelectual do que em contribuir efectivamente para a compreensão dos problemas que o autor claramente identifica. O Macamo pretende brilhar por cima do trabalho do outro, ao desqualificar uma obra empiricamente rigorosa e politicamente comprometida em nome de um purismo metodológico que raramente produz conhecimento alternativo comparável.
Evidentemente, o artigo de Elísio Macamo levanta questões legítimas sobre os limites da denúncia moral enquanto forma exclusiva de análise política. Contudo, ao formular esta crítica através de falsas dicotomias (denúncia vs. análise), de desqualificações retóricas (moralismo, simplificação) e de acusações infundadas (vender problemas às ONGs), o texto revela fragilidades analíticas mais graves do que aquelas que identifica em Hanlon. A meu ver, a verdadeira questão não é se devemos privilegiar denúncia ou análise; essa é uma falsa escolha. A questão é se a análise política moçambicana será capaz de articular rigor empírico, sofisticação teórica e compromisso normativo com a transformação das estruturas de dominação. Hanlon, com todas as suas eventuais limitações, oferece essa articulação. Macamo, não.
Muito mais preocupante ainda é que o tipo de crítica que Macamo articula – a crítica despolitizada, elitista e avessa ao conhecimento militante – serve objectivamente à manutenção do status quo. Ao desqualificar a denúncia e ao reclamar a análise (que ele nem sequer faz, ou a faz mal), Macamo eterniza o presente ao converter problemas históricos em questões retóricas, técnicas ou cognitivas. Foca-se na forma e não no conteúdo. Novamente, a análise política moçambicana precisa de rigor, sem dúvida. Mas precisa também de coragem para nomear as estruturas de dominação e para responsabilizar os seus agentes. Confundir essa coragem com “moralismo” é um erro intelectual grave – e politicamente perigoso.