Por Tiago J.B Paqueliua
A noite caía sobre o vilarejo de Mocímboa da Praia como uma manta de silêncio, abafando os sussurros dos que ainda se atreviam a falar. Falar sem medo das paredes, que em Cabo Delgado falam.
Numa ruína abandonada por amor à vida, um homem que teima viver um dia de cada vez, sentado num tronco, com uma garrafa de kombucha na mão, parecia um profeta embriagado.
Em tempos idos, esse homem dançava com os pés — não hoje, em que muitos dançam com a língua. À falta de palco, aplausos e seriedade, tornou-se ex-tocador de batuque, ex-cantor, ex-dançarino e ex-expectador de falsas promessas. Chamavam-no de Vai-Te Embora, porque nunca ficava onde não se dizia a verdade.
Ele olhou para os jovens frustrados que se aproximavam — poetas sem livros, pescadores sem barco, sem rede e sem peixe, um engenheiro desempregado, que via dignidade só no crachá e não no suor — sem noção alguma do que é o proletariado ético — e outros que mal sabiam ler e escrever, mas que tinham um conhecimento profundo da vida. Sentaram-se ao redor dele como se estivessem diante de um mestre de sabedoria — ou talvez de um profeta, não como esses que se encontram em tudo quanto é esquina.
— Já ouviram falar de Achille Mbembe? — perguntou ele, como quem invoca os antepassados.
— Ele diz que não há futuro para um país onde o Estado se torna um teatro de zombaria — respondeu um dos jovens, licenciado em filosofia, como se lesse as palavras do próprio Mbembe.
Vai-Te Embora sorriu, como se tivesse encontrado um aliado. Lembrou de Gilles Cistac, aquele que ousou lembrar que a Constituição é mais que um papel decorativo. Falou também de Selma Marivate, que ensina que as mulheres em Moçambique precisam de mais ação e menos congressos. E de Nelson Mandela, que reconhecia — e aconselhava — que o poder corrompe até os libertadores.
Os jovens ouviam, fascinados, como se estivessem descobrindo um mundo novo.
— E não para por aqui — acrescentou Vai-Te Embora, com um olhar que parecia desafiar os presentes a fazerem algo.
— Jaime Macuane nos lembra que a nossa luta não é apenas contra a opressão, mas também contra a nossa própria ignorância — disse ele, com uma voz que parecia ecoar pelas ruas vazias.
Aconselhou os presentes a aprenderem com Estácio Valoi, que vezes sem conta nos mostra que “as feridas que não sangram doem, do mesmo modo que o silêncio ecoa sempre mais alto que os tiros.”
Sorriu. Um sorriso que parecia iluminar a noite, que ia se tornando espessa, clamando para o recolher à cama de cada um.
Os ouvintes de Vai-Te Embora saíram com a lição aprendida, acrescentada às outras anteriores — principalmente àquela de que os novos colonialistas não vinham do além-mar, mas da casa. Não chegavam de navio, mas em Nissan Patrols e Land Cruisers, enquanto o povo, os cabritos, o milho e os bambús se preparavam para se amontoar como uma única família sofredora nas carroçarias de tratores Mahindra, em silêncio. E neste silêncio — mais alto que a atual colonização — falavam.
— Aqui não se trata de esquerda ou direita. Trata-se de cima e de baixo — dizia ele, com uma voz que parecia ecoar pelas ruas vazias.
Seus ouvintes, como se fossem esponjas, absorviam as palavras. Todas. Sabiam que a verdade era perigosa, mas sabiam também que o silêncio era ainda mais.
— Não me chamem de pessimista — repetia Vai-Te Embora, com um sorriso amargo. — Chamem-me de sobrevivente.
Vai-Te Embora deixava sempre para o fim o último gole de kombucha — geralmente quando o sol começava a corar o nascente. Depois disso, não falava mais. Se calava.
Diziam que se calava por opção. Outros juravam que era levado pelos mesmos que levaram o bom senso deste país.
Mas os que o ouviram naquela noite seguem repetindo suas palavras — com ou sem batuques, com ou sem dança — mas com o silêncio, como quem sabe que a verdade pode ser o único som mais alto que o medo.