Edgar Barroso
Teodato Hunguana, antigo juiz conselheiro do Conselho Constitucional, escreveu um clarividente artigo de opinião sobre o último processo eleitoral – publicado no jornal Savana de 27 de Outubro do corrente ano – onde sectores relevantes do cenário político, da sociedade civil e da opinião pública generalizada comungam da convicção de que foram, com as devidas evidências documentais e flagrantes atropelos legais, processuais, organizacionais e até criminais, as mais fraudulentas da história da nossa jovem democracia nacional.
Hunguana levantou, no referido texto, sensíveis aspectos éticos e morais que quem de direito necessariamente envolvido no processo eleitoral moçambicano – não só o STAE e a CNE, mas também sectores específicos do partido no poder, da nossa polícia, dos tribunais judiciais e até do Conselho Constitucional – deveriam tomar em superior atenção, muito para além de posturas rígidas (de surdez ou de cegueira convenientes e coniventes) ou de refúgio em tecnicidades de ordem legal ou legalista, invariavelmente colocadas acima da busca da suprema verdade dos factos. Porque, se não fosse tomada em consideração a soberania do povo, esse mesmo povo terá, consequentemente, a legitimidade de assumir, por suas próprias mãos, os rumos do seu próprio destino e por todos os meios necessários (incluindo a violência). E que a responsabilidade pelo caos daí advindo seria integralmente colocada sobre os financiadores, organizadores, gestores e supervisores da grande mentira eleitoral que está a ser as últimas eleições autárquicas.
Em resumo, e segundo Teodato Hunguana, se o interesse último do nosso Estado é a prevalência da unidade nacional, da ordem e segurança públicas, e do respeito supremo da vontade popular (que paga impostos, taxas e outras contribuições para que o mesmo Estado, contratualmente, vele pela salvaguarda dos seus interesses e escolhas expressos nas urnas), há que dar César o que é de César (sobre os partidos políticos da oposição que, factualmente, ganharam em algumas autarquias). Portanto, que os nossos órgãos eleitorais deveriam inescrupulosamente pautar-se pelo, e cito, “princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade”. Hunguana está a referir-se, clara e evidentemente, à verdade eleitoral.
Indubitavelmente, um argumento de grande nobreza por parte do Teodato Hunguana, alguém que, pela sua carreira política e como Estadista, conhece a Frelimo e o nosso Estado como muito poucos. Não me quero ater ao resto do que ele diz – do “centralismo presidencialista absoluto”, do silêncio cúmplice e ensurdecedor das reservas morais dentro desse sistema que têm medo de falar “fora das estruturas”, dos gangsters que se foram infiltrando no partido para subverter a democracia e o patriotismo em busca de interesses, privilégios e vantagens pessoais ou de grupo, da arrogância, ignorância ou insensibilidade crescentes para com as aspirações e os anseios das massas, da premeditação, organização e gestão criminosa de assuntos de Estado, bem como da necessidade urgente de purificação de fileiras. São assuntos sobejamente conhecidos pela opinião pública nacional e internacional.
O que quero, e muito brevemente, é explorar a sua ideia sobre a primazia da legalidade e não do legalismo, nos nossos processos eleitorais. Exaustivamente, temos visto como os nossos tribunais judiciais – e até o Conselho Constitucional – têm fundamentado os seus acórdãos sobre contenciosos eleitorais: com excesso ad nauseaum de jargões jurídicos, referências a emaranhado de leis, citação de manuais e alegações de pareceres de jurisprudência de natureza e âmbito de tal forma confusos e contraditórios que, crescentemente, fica-se com a convicção, até entre os seus pares jurisconsultos, que se está a fazer mais trabalho político com clarividentes inclinações partidárias (pró-status quo nos bastiões do partido no poder e anti-status quo nos bastiões da oposição) do que o exercício e a aplicação do direito, da justiça e da verdade eleitorais (onde se olha mais para o MÉRITO DA RECLAMAÇÃO).
Embora eu não tenha estudado Direito como curso superior (só tive cadeiras essenciais de uma e de outra coisa na licenciatura), de estudos e leituras paralelas que tenho feito sobre o assunto, quero salientar aqui 4 ou 5 coisas essenciais (que podem ser devidamente exploradas e argumentadas pelos profissionais da área), nesse debate entre a legalidade e o legalismo:
- A primazia da legalidade é essencial para proteger os direitos e liberdades dos cidadãos. Ela assegura que as leis sejam JUSTAS e aplicadas de maneira consistente, evitando ARBITRARIEDADE DOS TRIBUNAIS (E DO CONSELHO CONSTITUCIONAL). O legalismo, por outro lado, pode levar a INTERPRETAÇÕES ESTRITAS das leis (colocaria aqui aqueles “prazos de 48 horas” que se esgotam no fim-de-semana), que podem restringir desnecessariamente os direitos dos mesmos cidadãos.
- A primazia da legalidade permite a interpretação e adaptação das leis às mudanças na sociedade. Isso é crucial para garantir que o direito seja relevante e eficaz ao longo do tempo. O LEGALISMO RÍGIDO pode tornar as leis obsoletas e inadequadas para as necessidades contemporâneas (colocaria aqui aquelas exigências confusas de “cópias originais de editais” vs “cópias não carimbadas de editais”), podendo provocar instabilidade política/social se ferir os interesses supremos dos cidadãos.
- A legalidade coloca a ênfase na JUSTIÇA e na EQUIDADE, em vez de se apegar estritamente à LETRA DA LEI. Isso permite que os tribunais (e o Conselho Constitucional) considerem o espírito da lei e o contexto duma SITUAÇÃO ESPECÍFICA (onde funcionários do STAE/CNE fogem com editais e adulteram actas, a PRM intimida, espanca e prende supervisores dos partidos da oposição, a CNE nos distritos ilegalmente recorre de decisões dos tribunais, os tribunais emitem sentenças políticas, etc etc), o que é fundamental para a obtenção de decisões justas.
- O legalismo pode levar a um EXCESSO DE REGULAMENTAÇÃO, onde as leis se tornam tão detalhadas e prescritivas que sufocam a liberdade e a iniciativa individuais (e isso parece estar a ser feito de forma propositada para “cansar” os prejudicados ou para “dissuadir” reclamações dos injustiçados). A primazia da legalidade enfatiza a necessidade de LEIS CLARAS (sem ratoeiras técnicas deliberadamente omissas ou deixadas à interpretação livre do legislador) e não excessivamente prescritivas (contra a tal cena segundo a qual “os processos eleitorais ocorrem em cascatas de cumprimento taxativo que, se não for cumprido, nada podemos fazer”).
- O legalismo estrito pode dar margem a ABUSOS DE PODER por parte das autoridades de administração da justiça, já que estas podem se esconder por trás da letra da lei (e é assim que se fazem expedientes políticos mais facilmente), mesmo quando as suas acções são injustas ou contrárias aos princípios fundamentais. A primazia da legalidade exige que o poder seja exercido dentro dos limites da lei e de maneira justa.
Terminando, volto a citar o Teodato Hunguana: “A legalidade que nos impede o caminho da verdade [eleitoral] poder ser legalismo, mas não é legalidade. Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será verdadeira se for o produto da justiça”. Fim de citação.
Os eleitores querem paz, senhores juízes! Tragam-nos a justiça eleitoral.