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Quando a Justiça se Contradiz: A Enigmática Tentativa de Venda de um Sobrinho em Rapale

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

I. Introdução: Um País Tido Contraditório

Num Estado de Direito funcional, a actuação das autoridades policiais e judiciais deve obedecer aos cânones da legalidade, da coerência e da transparência. Quando essas premissas são negligenciadas, o sistema de justiça transforma-se não num garante de ordem e protecção, mas num factor de desconfiança cívica e institucional.

O episódio recentemente reportado pelo Notícias.mmo. (edição de 24 de Junho de 2025), envolvendo a presumida tentativa de venda de um menor pelo seu próprio tio, na localidade de Matatara, distrito de Rapale, revela uma dessas situações-limite em que a justiça moçambicana tropeça na sua própria retórica.

De acordo com o relato, um cidadão de 29 anos foi detido em flagrante delito por tentativa de transaccionar o seu sobrinho por cinquenta mil meticais. No entanto, e em total desconexão lógica e jurídica, o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC) afirma que estão em curso diligências para localizar o alegado comprador.

A contradição em pauta é o ponto de partida para uma crítica académica mais ampla sobre o estado da justiça penal em Moçambique.

II. O Flagrante Delito e o Fantasma do Comprador

Em qualquer sociedade regida por normas jurídicas minimamente robustas, o conceito de flagrante delito exige precisão.

De acordo com o Código de Processo Penal moçambicano, considera-se flagrante a situação em que alguém é surpreendido no exacto momento da prática do crime, ou logo após a sua consumação, em circunstâncias que não suscitam dúvidas quanto à autoria e à acção delituosa.

Ora, no caso em apreço, a acusação é de tentativa de tráfico de seres humanos — um crime que, pela sua própria natureza, exige dois elementos operacionais: um vendedor e um comprador.

Se, como sustenta o SERNIC, o detido foi surpreendido no momento da transacção, a ausência do comprador levanta uma questão iniludível: onde estava o outro interveniente do crime no momento da detenção?

A lógica penal e a experiência comum rejeitam a possibilidade de um flagrante a solo num acto de compra e venda. A menos que se trate de um crime ficcionado ou encenado, é incompreensível que o comprador — peça chave da consumação — permaneça, semanas depois, “por localizar”.

Este desencontro factual revela uma de duas possibilidades: ou o SERNIC errou ao qualificar a detenção como flagrante (o que implicaria uma falha grave na comunicação institucional), ou houve flagrante, sim, mas com cumplicidade na fuga ou omissão deliberada de responsabilização do comprador. Em ambas as hipóteses, a integridade do processo fica irremediavelmente comprometida.

III. Da Retórica Punitiva à Realidade Investigativa

Esta contradição entre a narrativa institucional e os requisitos formais da justiça penal não é uma mera falha de comunicação — é um sintoma da deterioração da racionalidade jurídica no seio das instituições moçambicanas.

Ao admitir a existência de uma tentativa de transacção humana e, simultaneamente, a inexistência (ou desconhecimento) do comprador, o SERNIC valida uma narrativa de intervenção policial descolada da realidade fáctica.

Tal paradoxo não seria possível sem a complacência de uma imprensa que, em vez de exercer o seu papel crítico, se limita à reprodução acrítica de comunicados oficiais.

O jornalismo, neste caso, deixa de ser um instrumento de fiscalização democrática e transforma-se em caixa de ressonância de um Estado que já não distingue entre acto investigativo, prova indiciária e consumação penal. A verdade passa a ser uma construção retórica, ao serviço da aparência de eficácia e não da substância da justiça.

IV. Implicações Jurídicas, Éticas e Políticas

A gravidade do caso não reside apenas na barbárie do acto — a tentativa de vender um ser humano — mas na forma como ele é tratado pelas instituições que deveriam combatê-lo.

Em vez de servir de ponto de viragem para uma justiça mais responsável e meticulosa, o episódio de Rapale expõe as seguintes debilidades sistémicas:

a. Défice de rigor investigativo: a ausência de um relatório claro sobre o paradeiro do menor, o perfil do comprador e os meios de prova existentes denuncia uma justiça improvisada.

b. Vulnerabilidade das vítimas: nada foi dito sobre o acolhimento, protecção ou avaliação psicossocial da criança envolvida, o que sugere um sistema mais preocupado com detenções simbólicas do que com a tutela efectiva dos direitos fundamentais.

c. Fuga ao escrutínio democrático: os órgãos de fiscalização parlamentar, o Ministério Público e as comissões de direitos humanos permanecem em silêncio ensurdecedor, perpetuando a impunidade institucional.

d. Desinformação pública: a circulação de versões contraditórias mina a confiança do cidadão comum e perpetua o ciclo de descrédito das instituições estatais.

V. Questões que Clamam por Resposta

É, pois, legítimo — e, na verdade, urgente — que a sociedade civil, os académicos e os órgãos de soberania exijam respostas claras e fundamentadas:

1.⁠ ⁠Quem é o alegado comprador e porque ainda não foi identificado?

2.⁠ ⁠Que tipo de prova material ou testemunhal sustenta a acusação?

3.⁠ ⁠Em que circunstâncias se encontrava o menor no momento do acto?

4.⁠ ⁠Que medidas de urgência foram aplicadas para salvaguarda do menor e da sua família?

5.⁠ ⁠Que fundamentos jurídicos precisos sustentam a detenção, e que grau de fiabilidade possuem?

Sem o devido esclarecimento destas questões, corremos o risco de ver neste episódio apenas mais um número da tragicomédia judicial que se tornou habitual em Moçambique.

VI. Conclusão: A Justiça Fora de Si

A tentativa de vender um ser humano em pleno século XXI é, por si só, um acto de abjecção. Mas mais abjecta ainda é a banalização da justiça enquanto espectáculo descoordenado, onde as autoridades se apressam a anunciar sucessos antes de consolidar provas, identificar todos os implicados e respeitar os trâmites processuais.

O caso de Rapale simboliza o estado de uma justiça que se contradiz, tropeça na própria linguagem e, ao fazê-lo, arrasta consigo a pouca confiança pública que ainda resta.

Num Estado que se quer legítimo e democrático, as instituições não podem ser tolerantes com a sua própria incoerência.

Moçambique não está apenas fora da lei. Está, tristemente, fora de si.

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