Por Tiago J.B. Paqueliua
O Comando da PRM da província de Maputo, citado pelo jornal O País, esclareceu que os quatro indivíduos abatidos pelas forças da Polícia da República de Moçambique (PRM) constituíam um bando de perigosos assaltantes e sequestradores.
Segundo as autoridades, agentes da corporação policial, ao aperceberem-se da tentativa de assalto a um estabelecimento comercial que os alvejados iam protagonizar, deslocaram-se ao local, tendo sido recebidos a tiros pelos criminosos. Na troca de tiros, proporcional, todos os quatro foram abatidos, desmentindo-se assim os rumores que davam conta de que os mortos seriam agentes da PRM.
Ainda segundo a versão oficial, um dos abatidos, identificado como Rashid Ahmed Khan, era já referenciado em círculos criminais.
A polícia rejeita também a tese de que seriam cinco homens, dos quais um teria escapado, garantindo que o grupo era composto por apenas quatro elementos, todos neutralizados no local.
Comentário
Este não é um caso isolado. Na véspera, dois outros polícias foram crivados com mais de meia centena de tiros, em circunstâncias nebulosas. Dias antes, um oficial de patente intermédia também tombou em condições semelhantes. Tudo isto ocorre numa altura em que antigos quadros da segurança, incluindo um ex-Comandante-Geral da PRM e um ex-ministro do Interior, começam a ser chamados pela Procuradoria-Geral da República para prestarem esclarecimentos sobre alegadas práticas obscuras do passado recente.
Este episódio, aparentemente banal na narrativa oficial, adquire contornos mais sombrios quando inserido no contexto histórico da relação entre o aparelho de segurança e o poder político em Moçambique. Ao longo de décadas, sectores da polícia foram instrumentalizados para silenciar dissidências, reprimir manifestações legítimas e assegurar que o Partido-Estado mantivesse o monopólio da força — e do medo.
É inevitável recordar o diagnóstico de Gilles Cistac, quando denunciava as zonas cinzentas da legalidade moçambicana: o Estado de Direito é um constructo frágil onde as balas, não raras vezes, substituem as sentenças transitadas em julgado. No plano filosófico, Gordon H. Clark lembrar-nos-ia que um sistema político sem fundamento ético objectivo degenera inevitavelmente em relativismo moral — aqui ilustrado pela facilidade com que antigos peões do regime são reciclados como peças descartáveis.
Do ponto de vista jurídico, esta sucessão de execuções extrajudiciais — ou mortes em circunstâncias suspeitas — deveria accionar todos os alarmes de um Ministério Público verdadeiramente autónomo. Mas, em vez disso, reina o silêncio cúmplice, disfarçado de segredo de justiça.
No campo sociológico, as mortes de agentes da ordem — homens que outrora cumpriram ordens questionáveis — expõem um paradoxo macabro: quando o Estado se serve do seu aparato repressivo para proteger elites, mais cedo ou mais tarde esse mesmo aparelho é sacrificado para limpar rastos de ilegalidades. Assim se perpetua o ciclo de impunidade que drena a confiança da população nas instituições.
Em síntese, a pergunta mantém-se: serão estes tiros o eco tardio de segredos guardados ou simples fatalidades de uma criminalidade urbana fora de controlo? Em Moçambique, onde cada investigação é um labirinto sem saída, o mais provável é que nunca se saiba — e quem souber dificilmente viverá para contar.
“A justiça engravida tardiamente quando se deita na cama do poder. E o parto, quando chega, é muitas vezes um aborto consentido.”