Por Tiago J.B. Paqueliua
Crónica para cidadãos com memória e estômago forte
Na aldeia de Xilapitangongo, província do Niassa, um dia o povo despertou governado, instruído, informado e limpo… por mentirosos. Não era praga, era rotina. Os cinco exímios vigaristas — um deputado, um pastor, um jornalista, uma professora patriótica e uma diarista enfeitada de status — personificavam o mais fiel retrato do país: todos a mentirem, todos a fingirem que acreditavam em algo valioso.
O deputado, apesar de não saber a data exacta de fundação do seu partido, nem a genealogia do mesmo, vivia a contar que era neto do fundador. Apresentava-se como o herdeiro da “visão original” enquanto empilhava falácias em cima de slogans ocos. A mentira era o seu palanque, e a multidão aplaudia-lhe a hipocrisia com entusiasmo de cachorros mansos.
O pastor, com voz grave e dramatismo de actor decadente, lia a Bíblia com a intenção de fazer Deus dizer o que nunca dissera. Omitia o que condenava a sua conduta e “revelava” novas doutrinas conforme o humor e a fome do dia. Os fiéis? Embriagados pela doçura do engano, preferiam ser enganados do que confrontados. Afinal, mentira que consola vale mais que verdade que obriga.
O jornalista, exímio manipulador do vernáculo e das vontades dos donos do microfone, relatava o que nunca ouvira, inventava fontes que nunca existiram, e fazia da manchete uma novela de especulações com nomes trocados. Era honrado pelos leitores mais preguiçosos e pelas entidades mais corruptas. Um verdadeiro “intelectual da mentira útil”.
A professora, com voz didáctica e tom doutrinário, ensinava que todos os sepultados na Praça dos Heróis eram “heróis nacionais”, ainda que muitos deles tenham sido bébados, pedófilos e tiranos travestidos de libertadores, ou cúmplices dos assassinos de um povo sempre adiado. Quem ousava contrariá-la era taxado de “oposisitor” e inimigo da pátria. A verdade nos livros era opcional; o dogma, obrigatório.
A diarista, por sua vez, contava com grande convicção que era casada com um mineiro sul-africano que enviava cartas perfumadas e promessas mensais. Na verdade, era solteira e solitária, mas a mentira tornava-lhe a vida mais suportável — e o estatuto social mais respeitável.
Mentiam entre si, mentiam para si, mentiam para todos. Viviam todos presos ao adágio que se tornara axioma nacional:
”O cabrito come onde está amarrado”
E como estavam amarrados à mentira, pastavam nela como gado resignado.
Mas, como em toda farsa que se preze, chegou o dia do remorso. Reuniram-se num momento de “epifania moral” e juraram deixar de mentir. Publicaram sua decisão a toda a aldeia de Xilapitangongo, e invocaram, com vozes trémulas e caras pálidas, duas máximas aprendidas na escola colonial:
1. “Não devemos mentir.”
2. “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.”
O povo aplaudiu mas não creu neles. Os mentirosos choraram. Mas o destino não perdoa farsantes arrependidos tarde demais. A vergonha começou a roer-lhes por dentro. Um a um adoeceram — não de doença física, mas de repulsa social. Gritavam por ajuda, escreviam bilhetes:
“Estou doente. Preciso de ajuda, por favor.”
Mas os aldeões, calejados e escaldados, ao lerem aquilo, meneavam a cabeça:
“Olha o descarado! Ainda a mentir até na doença…”
Morreram assim, abandonados, rotulados, esquecidos.
E porque ninguém acreditava sequer nos seus nomes, foram enterrados juntos, no mesmo buraco, com uma lápide comum que dizia:
“Mente uma vez, mente sempre, inda que fale a verdade, todos dizem que mente.”
Palavras coloniais, sim — mas justas, duras e educativas. Mais pedagógicas que toda a moral democrática pós-colonial feita de conveniências e conivências.
Epílogo amargo (e necessário)
Os políticos vigaristas, pastores charlatães, jornalistas de aluguer, professores papagaios do partido e cidadãos que mentem até o próprio nome deviam saber que a mentira mata. Mata a confiança, mata o espírito, mata a sociedade.
Haja vergonha e decência não somente de boca.
Pare-se de mentir! Fale-se a verdade uns aos outros — ainda que doa. Porque a mentira, essa, já matou e está a matar demais.