Por Tiago J.B. Paqueliua
RESUMO
O presente ensaio propõe uma leitura crítica do recente pronunciamento da Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique, proferido no âmbito das celebrações dos 50 anos do constitucionalismo moçambicano.
Analisamos o teor e o contexto da declaração da magistrada sob diversas perspectivas – jurídica, filosófica, ética, antropossociológica e psicossocial –, argumentando que o conteúdo do discurso revela uma estratégia discursiva de cinismo institucional.
Sustenta-se que a autocrítica institucional, para ter legitimidade, deve estar acompanhada de assunção de responsabilidade e de medidas reparadoras efetivas.
A análise aponta para uma crise de legitimidade constitucional, enraizada em décadas de constitucionalismo formal desprovido de prática democrática substantiva.
Palavras-chave:
Constitucionalismo; Conselho Constitucional; cinismo institucional; Moçambique; Estado de Direito.
1. INTRODUÇÃO
Durante o seminário alusivo aos 50 anos do constitucionalismo moçambicano, realizado em 23 de junho de 2025, a Presidente do Conselho Constitucional (CC), Lúcia da Luz Ribeiro, afirmou que os momentos comemorativos não devem apagar os fracassos históricos do país, nem os desafios ainda persistentes.
Embora tal declaração pareça refletir um gesto de responsabilidade institucional, ela provém de uma instância reiteradamente criticada por seu papel passivo — quando não conivente — na erosão do Estado de Direito em Moçambique.
Este ensaio propõe uma análise crítica do discurso, articulando fundamentos jurídicos, éticos e sociológicos, para demonstrar que a autocrítica enunciada carece de base moral e prática, configurando uma encenação institucional que oculta a própria corresponsabilidade do CC, na legitimação de abusos constitucionais.
2. O CONSTITUCIONALISMO MOÇAMBICANO ENTRE O NORMATIVO E O FORMALISMO
A Constituição da República de Moçambique, desde a sua primeira versão em 1975 até à revisão de 2004, passou por diversas reconfigurações institucionais.
A Carta de 1975 foi promulgada num contexto de monopartidarismo, refletindo uma concepção centralista e revolucionária de poder.
A abertura democrática de 1990 representou uma tentativa de transição para o modelo de Estado de Direito.
Contudo, como destaca Bobbio (1987), uma constituição só se materializa como garantia de liberdade quando acompanhada da separação efetiva de poderes, de um judiciário independente e de mecanismos de controle.
Em Moçambique, a prática demonstra uma distância abissal entre a norma escrita e a sua implementação.
A criação do Conselho Constitucional em 2003 deveria representar o reforço da fiscalização da constitucionalidade.
No entanto, sua atuação tem sido marcada por decisões controversas, como a validação de resultados eleitorais amplamente contestados, e a recusa de apreciação de matérias sensíveis à democracia participativa.
3. A AUTOCRÍTICA SEM RESPONSABILIDADE
A autocrítica institucional requer, conforme Habermas (1992), uma prática discursiva baseada na coerência entre fala e ação. Quando tal coerência se rompe, surge o que chamamos de cinismo institucional — um fenômeno em que as instituições proferem discursos de arrependimento ou preocupação, sem que isso se traduza em reformas internas ou revisões de conduta.
A declaração da Presidente do CC expressa: “Existe a tendência de, em momentos comemorativos, priorizarmos as vitórias e as conquistas do povo moçambicano, porém isso não pode implicar a marginalização dos nossos fracassos e dos desafios persistentes” (RIBEIRO apud O País, 2025). Tal enunciado, se viesse de uma entidade da sociedade civil ou de um académico, teria o peso de uma advertência crítica. Mas vindo da magistratura máxima da justiça constitucional, representa uma tentativa de preservar o prestígio institucional, através de uma retórica vazia de consequências.
4. O PERIGO DA HOMOGENEIZAÇÃO CONSTITUCIONAL
Outro trecho do discurso alerta para a importância da unidade nacional como processo contínuo, do qual a Constituição seria parte integrante. Contudo, como adverte Santos (2005), a retórica da unidade tem sido frequentemente utilizada como pretexto para sufocar o dissenso político.
A Constituição moçambicana de 2004 (art. 74.º) consagra o pluralismo político e a liberdade de organização.
Na prática, todavia, o Estado continua a operar com base em lógicas monopartidárias, onde a pluralidade institucional é apenas decorativa. A unidade, neste caso, torna-se uma forma de coerção simbólica e de silenciamento das vozes dissidentes.
5. CONSEQUÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO FORMAL
A manutenção de um discurso institucional que ignora a realidade concreta das violações de direitos tem efeitos psíquicos deletérios sobre o corpo social.
Conforme aponta Baxi (2002), o descompasso entre a norma e a experiência cotidiana cria uma cultura de resignação cívica.
No plano antropossociológico, observa-se a transformação da Constituição em objeto de reverência passiva, desconectada das lutas concretas da população por justiça.
A Constituição passa a funcionar como fetiche institucional, de cuja aplicabilidade o povo é excluído, servindo apenas como argumento retórico em cerimónias oficiais.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pronunciamento da Presidente do Conselho Constitucional de Moçambique revela mais do que uma tentativa de reflexão nacional: revela a profundidade da crise de legitimidade que atinge as instituições do Estado.
A ausência de responsabilização concreta, a recusa em rever jurisprudências coniventes e a adesão a uma retórica cosmética configuram uma prática de institucionalidade aparente — na qual as instituições falam como se fossem autônomas, mas agem como aparelhos do poder político.
Se o constitucionalismo moçambicano quiser ser mais do que um enunciado, deverá passar por uma refundação ética, que inclua, entre outras medidas: a responsabilização institucional dos órgãos superiores do Estado, a revisão do papel do CC, e o resgate da Constituição como instrumento de justiça social, e não de legitimação de elites.
REFERÊNCIAS
1. BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Brasília: Editora UNB, 1987.
2. CONSTITUIÇÃO da República de Moçambique. Aprovada pela Lei n.º 1/2004, de 21 de Julho. Maputo, 2004. (Com revisões).
3. DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
4. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.
5. O PAÍS. Presidente do CC defende necessidade de olhar também para os fracassos do país. O País, Maputo, 23 jun. 2025. Disponível em: www.opais.co.mz. Acesso em: 23 jun. 2025.
6. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2005.