Sociedade

MOÇAMBIQUE INDEPENDENTE EMPOBRECEU  77%  DE CRIANÇAS

 

Por Tiago J. B. Paqueliua

 

 

Resumo

Este artigo analisa, sob perspectiva interdisciplinar, o dado recentemente divulgado pela UNICEF — de que 77% das crianças moçambicanas vivem em pobreza monetária, multidimensional ou ambas — articulando tal diagnóstico à persistente crise humanitária nas províncias de Cabo Delgado, Nampula e Niassa. Propõe-se, ainda, uma reflexão sobre a insuficiência estrutural do serviço social, a governança fragilizada e as implicações ético-políticas de se perpetuar uma infância sitiada pela carência.

 

  1. Introdução

No dia 3 de Julho de 2025, Yuchiro Yamamoto, representante da UNICEF, revelou na II Conferência Nacional sobre o Serviço Social que cerca de 77% das crianças moçambicanas subsistem em condições de pobreza monetária e multidimensional. Este indicador, à primeira vista estatístico, adquire contornos de manifesto político e ético quando contextualizado na geografia das crises regionais, violência armada, deslocamentos forçados e carências infraestruturais que marcam o norte de Moçambique.

 

  1. Pobreza Monetária e Multidimensional: Distinções e Conexões

No plano académico, a distinção entre pobreza monetária e multidimensional não é apenas semântica. A primeira traduz-se na insuficiência de rendimento familiar; a segunda amplia o conceito para dimensões como saúde, nutrição, educação, acesso à água potável, saneamento, habitação condigna e protecção contra violência. A coexistência destas privações configura um estado de vulnerabilidade complexa, cuja reversão exige intervenções sistémicas — do planeamento económico à segurança comunitária.

 

  1. Cabo Delgado, Nampula e Niassa: O Eixo da Fragilidade

 

3.1 Cabo Delgado

Desde 2017, o terrorismo armado transformou Cabo Delgado num dos epicentros da deslocação forçada em África Austral. Mais de um milhão de pessoas vivem em situação de deslocamento interno, segundo estimativas complementares ao dado da UNICEF. A destruição de escolas, postos de saúde e infraestruturas básicas perpetua o ciclo de pobreza infantil, agravado por traumas psicossociais.

 

3.2 Nampula

Nampula apresenta o maior crescimento populacional do país. Este fenómeno, combinado com migrações internas, cria cinturões periurbanos precários marcados por carências de saneamento, insegurança alimentar e educação precária. O elevado índice de fecundidade, conjugado com fragilidade institucional, aprofunda a pobreza intergeracional.

 

3.3 Niassa

Em Niassa, a pobreza infantil confunde-se com a pobreza ambiental. A sobreexploração madeireira, a migração rural e a ausência de infraestruturas sociais adequadas limitam o potencial de transformação de uma província rica em recursos. Assim, perpetua-se um modelo extractivo que beneficia elites locais e internacionais, mas pouco reverte para o bem-estar da infância.

 

  1. O Papel Estruturante do Serviço Social

 

A conferência sublinhou a lacuna crítica de assistentes sociais: um para cada 75 mil habitantes, face a um padrão regional recomendado de um para cada 5 a 10 mil. Esta desproporção revela que o serviço social, enquanto instrumento de mitigação das privações, é subvalorizado e estruturalmente subfinanciado. A ausência de uma ordem profissional, de um quadro normativo consolidado e de uma carreira reconhecida corrói o potencial de resposta integrada às vulnerabilidades infanto-juvenis.

 

 

  1. Considerações Éticas e Políticas

 

Sob o prisma da ética republicana, a pobreza infantil em Moçambique não é uma fatalidade antropológica, mas uma consequência de escolhas políticas, orçamentárias e regulatórias. A concentração de riqueza, a má governação de recursos naturais, o desvio de fundos públicos e a ineficiência administrativa perpetuam um cenário em que a infância permanece refém de ciclos viciosos de exclusão.

 

  1. Propostas para Superação Estrutural Para inverter este quadro, torna-se imperativo:

Consolidar um Estado de Providência funcional, capaz de garantir educação, saúde, nutrição e protecção efectiva;

Investir massivamente em infraestruturas básicas, sobretudo em zonas de conflito e pobreza extrema;

 

Integrar a abordagem de desenvolvimento sustentável à exploração de recursos naturais, revertendo dividendos para as comunidades locais;

Regular e dignificar a profissão de assistente social, criando uma ordem profissional com supervisão autónoma;

 

Reforçar mecanismos de monitoria e responsabilização de actores públicos e privados na implementação de políticas de redução da pobreza infantil.

 

 

  1. Conclusão

 

O dado de 77% de pobreza infantil deve funcionar como um estatuto de urgência nacional.

Não há soberania real quando três em cada quatro crianças subsistem à margem da dignidade. Não há paz sustentável em Cabo Delgado, Nampula ou Niassa enquanto o futuro colectivo for hipotecado na indigência. E não há projecto republicano que se legitime se continuar a gerir a pobreza como fatalidade e não como fracasso institucional que pode — e deve — ser corrigido.

 

 

Referências

 

  1. UNICEF Moçambique. 77% das crianças sofrem de pobreza monetária e multidimensional. Elisio Nuvunga, 3 de Julho de 2025.

 

  1. Instituto Nacional de Estatística. Relatórios de Pobreza e Bem-Estar (2022–2024).

 

  1. Yamamoto, Yuchiro. Intervenção na II Conferência Nacional sobre o Serviço Social, Maputo, 2025.

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