Cultura

“Do Katuitui ao Kamufôfo”– memórias da minha infância

 

Por José Honório

Com o rumo do país sob as nuvens da incerteza, que evidenciava as divergências que opunham o Governo à UNITA, o calendário gregoriano marcava o agoirento ano de 1992. Assim que se desfez da casa no humilde bairro Setenta, no início desse ano, finalmente a minha família mudou-se para o centro da cidade de Benguela.

Mas ao contrário do que eu esperava, essa mudança de residência era, na verdade, o prenúncio de um longo calvário para a minha família. O primeiro sinal foi a irreversível contradição do senhorio da nova residência na Rua Vasco da Gama. Por isso, tivemos que abandonar rapidamente tal casa ao fim e ao cabo de sete noites luarentas. A semana mais longa e incerta de toda a minha vida.

Com o senhorio insensível à nossa situação financeira, e meu pai somente empregado nas estatísticas do desemprego, minha família refugiou-se temporariamente num antigo casarão na Avenida Aires de Almeida Santos. Incrédulos, eu e meus irmãos murmuramos em silêncio, mas o destino estava traçado.

– Meus filhos, vamos ficar aqui algum tempo até conseguirmos uma casa melhor – dizia minha mãe, com uma lágrima de tristeza no canto do olho.

– Está tudo bem, mãe. Aqui, estamos bem. – respondemos em uníssono.

Às vezes, depois de contemplar o fulgurante brilho das estrelas, até fartar, eu entrava sorrateiramente no casarão e via minha mãe, de joelhos dobrados no chão frio e íngreme, olhando fixamente para o céu enquanto rezava:

– Até quando esse sofrimento vai durar, oh meu Deus! – clamava ela com uma voz já embargada.

Do que me lembro bem naquele casarão, além do saboroso peixe frito, molho de tomate, pão e chá de caxinde, que minha mãe nos servia, todas as manhãs, é mesmo da Sónia. Era uma vizinha mulata, linda e simpática. Mas tinha um defeito. Ou era surda como uma porta ou fingia sê-lo. Nunca ouvia sua mãe impaciente, quando lhe chamava em voz alta, todas as vezes que a menina violasse os marcos fronteiriços de casa.

– Sónia, Sónia!!!!! – chamava mil vezes aquela senhora, em voz alta e decidida. Contudo, a mocinha estava nem aí

– Não estás a ouvir-me chamar?! Sónia!! – reclamava insistentemente a vizinha, de pé junto ao portão. E girava a cabeça e as mãos como um agente regulador de trânsito ordenando o tráfego frenético de viaturas e kupapatas no agora bastante perigoso cruzamento da Mar e Sol, que dá as boas-vindas a quem chega a Benguela.

– Anda cá, Sónia! Onde estás? – reforçaria, já visivelmente aborrecida, a senhora com as mãos a postos para esbofetear o lindo rosto da minha amiga Sónia, de quem nunca mais ouvi falar.

Enquanto mãe e filha acertavam as contas dentro de casa, cá fora a minha família, sem nunca perder as esperanças, tinha mais um obstáculo pela frente. Apenas um mês depois, fizemos as nossas vimbambas outra vez à procura de outro sítio para viver.

Com lembranças de uma vizinha a vindicar a incurável distracção da sua filha, fomos em direcção à Avenida Fausto Frazão, entre o Bispado da Diocese de Benguela e o edifício dos Serviços Comunitários de Benguela.

O destino seria uma residência minimamente aceitável ao lado de escombros de uma antiga casa. Daí o perigo à espreita. Porém, o incómodo era transitar todos os dias pela sala da casa de um casal vizinho amigo dos meus pais, para entrar ou sair, pois era a única passagem, uma situação que, por vezes, gerava um mal-estar.

Como aquela monumental habitação era – e ainda é -pertença da Diocese de Benguela, a cuja instituição minha família muito agradece, então era comum, às vezes, ver claramente visto e ouvir o bispo Dom Óscar Lino Fernandes Lopes Braga, já falecido, a visitar o imóvel em cujo quintal havia era um pomar.

– Isso tudo é da Igreja! – dizia Dom Óscar, ladeado de padres, enquanto desfilava com seu hábito vistoso apontando para o horizonte.

Certo dia, meu irmão, Adelino, levado pela curiosidade, decidiu espreitar, através de um buraco na porta, o bispo mais longevo da Diocese de Benguela durante uma visita rotineira ao espaço.

Sem dar tréguas, minha mãe, devagarinho, deu-lhe um puxão de orelhas. O rapaz, em lágrimas, desatou aos gritos. Foi nesse momento em que o bispo, amigo das crianças, aproximou-se da porta, saudou-nos amavelmente com aquela sua voz rouca e passou suas mãos na cabeça de meu irmão chorão. Antes de se retirar, ainda nos abençoou.

Além disso, a nossa vizinha tinha um pato velho e chato. E nós, as crianças, nos divertíamos com isso. O bicho voava assustadoramente pelo quintal e todo o mundo fugia com medo do seu bico pontiagudo. É curioso que só vivi alguns meses naquela casa, mas mais de três décadas depois, ainda sinto o cheiro da terra molhada pela chuva miúda e matutina.

Dava gosto de contemplar o cortejo de pássaros exuberantes em voo acrobático e chilreado estridente, antes de bicarem as deliciosas mangas, goiabas e dendês que completavam o nosso menu. A dada altura, eu e meus irmãos flagrámos um Periquito de cores carnavalescas sobrevoando nossas cabeças. Tinha um brilho na cauda comprida. Chegado ao quintal, penetrou em um buraco estreito cavado no tronco de uma palmeira.

– Olha! Olha! É azul. É amarelo. É preto! Entrou aqui – disseram espantados alguns rapazes do nosso grupo.

– Tapa o buraco para o pássaro não sair – ordenara meu irmão Dinho com voz de comando.

Cercado o abrigo do pobre pássaro, Dinho, o chefe da rapaziada, tapou a entrada com suas mãos suadas. Enquanto ali o vento balançava as folhas dos arvoredos, nós aguardávamos pacientemente. Depois, meu irmão, não resistindo à curiosidade, tentou abrir ligeiramente o buraco. Só que o pássaro, abrindo suas asas de emergência, evadiu-se. Por um triz. Foi pasmo para todos nós.

Fora de casa, a nossa paragem obrigatória era no majestoso Jardim da República, de plantas cujas flores formam um festival de tonalidades, onde os namorados trocam juras de amor, sob uma gratuita serenata oferecida por pássaros – entre eles o famoso *Katuitui, cujo chilrear não passa despercebido a ninguém.

Seguindo outras crianças, eu atravessava a rua despreocupadamente. Descalço e com peito nu. O movimento de carros e motorizadas era a conta-gotas naquele tempo. A bacia de água do memorável Património Cultural, no centro do Jardim da República, com figuras esculpidas em pedra de angolanos colonizados carregando pesadas cargas e colonizadores portugueses de armas em punho, era o nosso invariável ponto de encontro para mergulhos rasos até sermos enxotados por funcionários dos Serviços Comunitários.

Foi aí onde, na mira da fome das doze horas, eu e meus amigos mastigávamos flores de acácia-rubra e chupávamos um pequeno fruto arredondado e adocicado, que ficou conhecido entre nós como kamufôfo. O mal era só se você esfregasse as mãos húmidas no corpo, depois de chupar o Kamufôfo. Uma alergia irritante e duradoura era a consequência.

Sentado em um banco do jardim ou deitado sobre a relva deste recanto de Benguela, enquanto a sombra duma Palmeira Real me amparava, eu cantava alto: “É [fome] das dozêêêê ! [horas], é das dozêêêê. Tá me levâââ!”.

E Deus respondeu ao clamor de minha mãe. Mais tarde, meu pai conseguiu finalmente emprego como motorista nos Serviços Comunitários do então Comissariado Municipal do Lobito, o que levou a que nos mudássemos imediatamente para esta cidade ferro-portuária da província de Benguela.

Honório Segunda, o meu pai, cumpria uma missão humanitária. Dotado de uma invulgar perícia ao volante e uma alegria contagiante, por causa dos cânticos folclóricos da nossa terra que lhe saíam da alma em perene catadupa. Era assim que o velho Honório, originário da aldeia de Chenga, município do Ucuma, na província do Huambo, conduzia o camião-cisterna de marca Volvo, de cor branca.

Todos os dias, incansavelmente levava água para matar a sede de milhares de populares em muitos bairros, sobretudo nas zonas altas da cidade do Lobito e da vila da Catumbela, ao tempo em que esta ainda era comuna lobitanga.

E imagine, caro leitor, quem era o acompanhante do motorista…?
Era eu mesmo que me deleitava ao apreciar soberbas paisagens, desde as já defuntas palmeiras da estrada Lobito/Benguela ao majestoso serpentear do Rio Catumbela, com as suas águas correndo para o mar sem qualquer aproveitamento.

“O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã [Salmos 30:5].

*Jornalista e poeta angolano

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