Por Tiago J.B. Paqueliua
No uso consciente do direito à indignação moral, escrevo, face ao facto de Mogovolas haver voltado a aparecer nas páginas da nossa história recente, não por conta de avanços na governação local, nem por melhorias nos serviços públicos, mas pela reincidência de um padrão que se tem tornado norma: o crime fardado, apadrinhado e logo arquivado.
No dia 9 de Julho de 2025, cinco agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) — entre os quais o comandante distrital de Mogovolas — e um agente do SERNIC foram detidos por participação directa no assalto à mão armada que resultou no roubo de 56 kg de ouro e uma gema rara (paraíba), pertencentes a um cidadão estrangeiro. Um dia depois, os mesmos foram postos em liberdade, enquanto “decorrem investigações”. A notícia foi confirmada pelo Jornal O País (11/07/2025), após hesitação institucional em divulgar a identidade funcional dos implicados.
Infelizmente, o episódio não é isolado. Em Novembro passado, a mesma região foi palco do roubo de 300 kg de turmalinas durante manifestações populares. Até hoje, nem gemas, nem culpados, nem vergonha institucional.
O que aqui se desenha não é apenas um crime, mas sim um retrato jurídico-político: a institucionalização da impunidade como ferramenta funcional dum Estado falido.
Da Delinquência Armadilhada à Delinquência Armada
Os agentes da lei transformam-se em delinquentes, e os delinquentes em “agentes de negócios paralelos”. A cadeia de custódia das provas dissolve-se em silêncios burocráticos. A confiança pública na imparcialidade dos órgãos de investigação e do Ministério Público evapora-se.
Este padrão demonstra o que chamo de “captura interna do Estado pela sua ala armada”. O uniforme que outrora simbolizava serviço à pátria é agora, em muitos círculos locais, o cartão de acesso à criminalidade privilegiada. E com que facilidade tudo se arquiva!
No plano constitucional, o artigo 2.º da CR diz-nos que “o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade.” Mas o que vemos é a sua tradução inversa: o Estado refugia-se na conveniência e funda-se na ilegalidade funcional.
Quando o Direito é rebaixado a coreografia, a justiça, nesta moldura, já não actua. Passa a ser postiça e burocrática, aparece apenas para emitir autos de soltura quando o réu é membro do sistema. A prisão preventiva — pilar da tutela penal provisória — é aplicada com fervor contra os marginais “comuns”, mas suspensa por osmose ética quando os implicados são do aparelho de Estado.
A isto chamo Direito Teatral: tudo se desenrola para inglês ver, para doador ouvir, para embaixador se calar. Mas ninguém, absolutamente ninguém, acredita que esses seis agentes enfrentarão condenações reais.
Neste contexto, é urgente abandonar a ingenuidade. A corrupção que se infiltra nos escalões da defesa e investigação criminal não é um “desvio” — é mecanismo operativo do sistema. A punição tornou-se excepcional, a absolvição a regra. A farda protege, porque é ela quem saqueia.
Conclusão
À luz do Direito Constitucional moçambicano e do Direito Internacional de Direitos Humanos, a situação é juridicamente insustentável. Viola o princípio da igualdade perante a lei, o dever do Estado de garantir a segurança pública, e destrói o direito fundamental à justiça — tornando os tribunais cúmplices por omissão.
Estamos, em suma, perante um “Estado de Excepção Oculta”, onde a legalidade é suspensa sempre que ameaça tocar nos tentáculos internos da corporação político-judiciária-policial. E o mais triste é que já nem há escândalo: há habituação.
Mogovolas não é apenas um distrito mineiro. É agora símbolo de uma república onde o ouro vale menos que a farda, e onde a Justiça não vê, não ouve e — sobretudo — não julga.
A Constituição jaz violada; o povo jaz roubado, enquanto os assaltantes — passeiam impunemente, armados de lei, ouro e silêncio, a deliciarem-se dos salários oriundos dos impostos das suas vítimas.
