O silêncio da saúde mental como motor invisível da violência
Por Tiago J.B. Paqueliua
O novo alerta humanitário é inequívoco: mais de 77% dos deslocados internos em Cabo Delgado estão em sofrimento psicológico, após múltiplas deslocações que combinam violência armada e choques climáticos como o ciclone Chido. E apenas um em cada cinco recebeu algum apoio de saúde mental — reflexo de cobertura insuficiente, falta de profissionais e ausência de espaços seguros. Entre os deslocados, 60% são crianças, muitas desacompanhadas. Estes dados constam de relatório recente do OCHA (Nações Unidas) e foram divulgados na imprensa lusófona e moçambicana.
A dimensão climática não é colateral: Chido integrou a época ciclónica 2024-25 no sudoeste do Índico e agravou vulnerabilidades já críticas nas províncias do norte.
No plano da violência, 2024 fechou com pelo menos 349 mortos em ataques no norte, um aumento de 36% face a 2023, com várias ações reivindicadas por filiados do Estado Islâmico. É a leitura do Africa Center for Strategic Studies, citada por diversos meios.
A hipótese desconfortável: vítimas e perpetradores partilham feridas psíquicas
A psicologia do conflito há muito demonstra que os perpetradores também padecem de perturbações relacionadas com trauma: prevalências elevadas de stress pós-traumático (PTSD), depressão, consumo de substâncias e fenómenos como “agressão apetitiva” (quando a violência se torna, por si, reforçadora). Essas condições aumentam o risco de revitimização social e de recidiva violenta, alimentando ciclos de violência.
Não é preciso aceitar acriticamente a equação “trauma = violência” (há alertas sérios contra leituras inflacionadas do PTSD), mas o corpo de evidência empírica sobre combatentes e ex-combatentes em contextos comparáveis é robusto o suficiente para sustentar uma política pública de saúde mental extensiva — não apenas para as vítimas diretas, mas também para os detidos, desmobilizados e comunidades de acolhimento.
Moçambique falhou a “quarentena terapêutica” pós-guerra?
A pergunta é legítima: a guerra civil FRELIMO-RENAMO terminou com os Acordos de Roma (1992). Seguiu-se um esforço de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR), mas sem uma “quarentena terapêutica” de largo espectro (um envelope psico-social universalista e prolongado para beligerantes e populações). A literatura especializada sobre ex-combatentes da RENAMO mostra persistência de redes de mobilização e reaparecimento de violência política (2013–2016), sinalizando falhas na reintegração para lá das métricas formais do DDR.
Há, além disso, avaliações comparadas de programas DDR que identificam um viés para componentes económico-administrativas em detrimento de intervenções psico-clínicas comunitárias — precisamente o tipo de “quarentena terapêutica” que poderia ter amortecido os efeitos transgeracionais do trauma.
Se aceitarmos que o trauma não tratado se sedimenta nas instituições, nas forças de segurança, nos agrupamentos armados e nas comunidades, então a escalada de letalidade observada em 2024 não surpreende: conflito crónico + choques climáticos + défice de MHPSS (Mental Health and Psychosocial Support) = terreno fértil para normalização da violência.
O que fazer já (com realismo)
1. MHPSS como pilar transversal: integrar serviços de saúde mental comunitários (baseados em evidência, culturalmente adaptados) em saúde, educação e proteção — não como adenda, mas como linha orçamental obrigatória em Cabo Delgado, Nampula e Niassa.
2. Crianças primeiro: identificação, reunificação familiar, espaços seguros e terapias breves baseadas em trauma; formação de professores e ativação de redes escolares pós-choque.
3. Cadeia de justiça com tratamento: em prisões e centros de detenção, expandir programas de reabilitação e reintegração para indivíduos associados a grupos extremistas, com protocolos clínicos e de avaliação de risco.
4. DDR 2.0: reabrir um módulo psico-social de longa duração para ex-combatentes e famílias (incluindo pares e líderes comunitários), com monitorização longitudinal e apoio socioeconómico condicionado à participação terapêutica.
5. Polícia e Forças locais “trauma-informadas”: formação obrigatória em primeiros socorros psicológicos, deontologia e gestão de stress operacional, reduzindo riscos de abuso e retraumatização.
6. Clima e segurança: planear respostas integradas a ciclones/cheias que incluam intervenção psico-social desde a fase de preparação, evitando que cada temporada chuvosa reabra feridas.
Conclusão
Sim, há bons motivos para suspeitar que os transtornos psicológicos das vítimas são espelho das feridas dos próprios perpetradores — e que a ausência de uma “quarentena terapêutica” séria após a guerra civil contribuiu para a escalada e perpetuação da violência. O novo retrato de Cabo Delgado não é apenas uma crise de segurança ou de clima: é uma crise de saúde mental pública, crónica e acumulada. A pergunta que fica é a sua: não será por aqui — pela negligência do trauma — que a violência continua a crescer?
Nota do editor: Este texto apoia-se em fontes primárias e secundárias recentes (OCHA/ONU; relatórios e estudos académicos), bem como em literatura sobre ex-combatentes e violência pós-conflito em Moçambique e contextos comparáveis. Onde existirem divergências metodológicas (por ex., prevalências de PTSD), assinala-se a prudência interpretativa.