Só entre 2020 e 2025, a África Austral testemunhou uma onda de eleições que, longe de consolidar a experiência democrática na região, revelou um padrão preocupante de erosão das liberdades cívicas e de manipulação sistemática de processos eleitorais. Países como Moçambique, Zimbabwe, Angola e Tanzania, todos governados por partidos que emergiram das lutas de libertação colonial, enfrentam agora uma juventude desiludida e crescentemente mobilizada que já não aceita a narrativa histórica como justificação para a sua perpetuação no poder.
Vamos directa e resumidamente aos factos. Na África Austral, a manutenção autoritária do poder assenta-se na captura e manipulação das instituições eleitorais, combinada com a repressão violenta da oposição, o controlo do fluxo de informação e a instrumentalização judicial dos processos políticos. Em suma, criou-se um ecossistema político onde a oposição é mantida numa posição de fraqueza estrutural e crescentemente impedida de competir em igualdade de condições, enquanto os regimes no poder perpetuam uma democracia de fachada. Isso deixou de ser novidade.
A (heróica) insurreição da Geração Z
Novidade mesmo é a emergência, contra todos os riscos, de uma nova geração na África Austral, designada por Geração Z, que se impõe como uma força transformadora que desafia as narrativas históricas e as estruturas políticas herdadas da luta contra o colonialismo. Em países como Moçambique, Angola e Zimbabwe, onde a maioria da população é jovem, esta geração vê os partidos libertadores (Frelimo, MPLA e ZANU-PF) não como símbolos de emancipação, mas como representantes de décadas de corrupção, desemprego e promessas vazias. Dominando as redes sociais, os jovens mobilizam-se de forma descentralizada e criativa, utilizando smartphones, transmissões ao vivo (vulgo lives) e grupos digitais em plataformas de comunicação e informação para contornar a censura e coordenar acções legítimas de protesto.
Nesse contexto, estratégias e tácticas de desobediência civil têm-se tornado mais sofisticadas, combinando bloqueios económicos e manifestações pacíficas com estratégias de resistência local. Rejeitando a legitimidade da “luta de libertação” e o monopólio moral dos antigos movimentos revolucionários, os jovens da Geração Z têm como pautas afirmativas novas formas de representação política, de aplicação da justiça social e de redistribuição real das riquezas nacionais, deslocando o eixo do poder da história revolucionária para o futuro crescentemente incerto das suas principais aspirações e interesses.
Cenários futuros, do optimismo à catástrofe…
Tomando em consideração o contexto supracitado, o cenário mais optimista baseia-se em precedentes recentes de transição democrática na região. O Botswana, em 2024, viu o seu Partido Democrático ser afastado do poder após quase seis décadas, num processo pacífico que demonstra que mudanças democráticas são possíveis na África Austral. Na África do Sul, o ANC perdeu a sua maioria parlamentar pela primeira vez em 30 anos nas eleições de Maio de 2024, sendo forçado a formar uma coligação com o partido Democratic Alliance. Neste cenário optimista, a pressão sustentada da Geração Z, combinada com observação eleitoral internacional mais rigorosa e pressão diplomática de organismos regionais como a SADC, forçaria os regimes a implementarem reformas graduais. Paralelamente, a dinâmica económica poderia reforçar este cenário. Com a crescente dependência de investimento directo estrangeiro, regimes autoritários da região poderão enfrentar pressão de investidores que exigem estabilidade e segurança jurídica, risco reduzido e Estado de direito.
Não obstante, o cenário mais provável a médio prazo é a manutenção de sistemas de “autoritarismo eleitoral” onde as eleições continuarão a ser realizadas regularmente, mas com resultados largamente predeterminados através das tácticas de manipulação descritas anteriormente. Este é o padrão dominante na região há décadas. Neste cenário, os partidos da libertação manter-se-ão no poder através de combinações de fraude eleitoral, repressão selectiva, cooptação de sectores da oposição e exploração da fragmentação opositora. As eleições servirão mais como rituais de legitimação do que como competições genuínas pelo poder. Especificamente, esses regimes transformarão as eleições em rituais que enganam as pessoas fazendo-as acreditar que têm poder de decisão em eleições sem escolha nenhuma (ao estilo do que aconteceu há dias na Tanzania). Assim sendo, a juventude continuará a protestar episodicamente, mas sem conseguir mobilização sustentada suficiente para forçar mudanças fundamentais. Por conseguinte, os regimes vigentes aprenderão a gerir os ciclos de protesto através de concessões tácticas limitadas (ao estilo do “diálogo nacional inclusivo” em Moçambique), seguidas da repressão selectiva dos líderes mais carismáticos. Invariavelmente, a comunidade internacional emitirá declarações de preocupação, mas continuará a priorizar a estabilidade e os seus interesses económicos acima da promoção efectiva da democracia na região.
Todavia, o cenário mais alarmante envolverá a escalada dos actuais níveis de violência para conflitos generalizados que poderão transformar partes da África Austral em “estados falhados” comparáveis ao Sahel, ao Corno de África ou à República Democrática do Congo. Este cenário torna-se plausível quando consideramos vários factores convergentes. Especificamente, os regimes da África Austral, herdeiros de partidos libertadores que chegaram ao poder pela força, mantêm uma lógica de dominação baseada na repressão e na militarização da política. Por essa via, e incapazes de aceitar a alternância democrática, eles tratam as forças da oposição como uma ameaça existencial, recorrendo à violência quando percebem haver um risco real de perda de poder. Nesse contexto, a influência militar permanece central. Para citar alguns exemplos, no Zimbabwe, os generais moldam a política desde o golpe de 2017; em Angola, João Lourenço reforçou o controlo das forças armadas e dos serviços secretos, institucionalizando o autoritarismo com a aprovação e implementação de uma nova Lei de Segurança Nacional (2024/2025). Em Moçambique, as forças de defesa e segurança não têm vergonha nenhuma em correr de um lado para o outro com urnas de votação nas mãos, passando a ser um incontornável actor dos nossos processos eleitorais.
Consequentemente, a Geração Z, destemida por não ter vivido o período revolucionário, crescentemente enfrentará esses regimes políticos inflexíveis, o que aumentaria o risco de confrontos violentos. Por um lado, essa geração já provou o suficiente, em termos de capacidade destrutiva de alta intensidade (em Moçambique, em Angola e, mais recentemente, na Tanzania). Por outro lado, a crescente proliferação de armas em mãos alheias e o potencial surgimento de grupos armados não estatais tornam o cenário ainda mais volátil. Adicionalmente, as crises políticas trarão, certamente, custos económicos profundos, como demonstraram os protestos pós-eleitorais em Moçambique, que paralisaram o comércio e a indústria. Provavelmente esse será o cenário na Tanzania, quando se contabilizar o efeito das vandalizações durante o último pleito eleitoral naquele país. Enquanto isso, instituições regionais como a SADC e a União Africana mostram-se cada vez mais impotentes e irrelevantes, emitindo declarações inócuas que alimentam a impunidade dos regimes autoritários. O endurecimento observado na Tanzânia após as eleições de 2025 ilustra um preocupante efeito dominó regional, em que promessas de abertura se transformam em novas formas de repressão, amplificando a desilusão e a radicalização juvenil em toda a zona austral do continente.
Em suma, Moçambique enfrenta um dos maiores riscos de colapso violento na África Austral. A violência pós-eleitoral entre 2024 e 2025 atingiu níveis inéditos e ameaça evoluir para uma insurreição prolongada, caso não se implementem urgentemente reformas radicais. No Zimbabwe, a combinação de crise económica extrema, repressão política e manipulação da oposição cria um ambiente explosivo. A recorrente tentativa da ZANU-PF de assegurar, por todos os meios, uma maioria de dois terços no parlamento para alterar a Constituição, pode eliminar o espaço democrático e gerar resistência violenta. Em Angola, a nova Lei de Segurança Nacional de 2025 centraliza o poder na presidência, institucionaliza a vigilância e fortalece o caráter militarizado do Estado, o que, aliado ao adiamento contínuo das eleições locais, pode provocar protestos severamente reprimidos. Já na Tanzania, o retorno ao autoritarismo sob Samia Suluhu Hassan, com eleições fraudulentas e repressão letal contra opositores, ameaça empurrar o país para o caos a qualquer momento.
Concluindo…
A África Austral encontra-se numa crítica encruzilhada histórica. Os partidos libertadores, que há décadas capitalizam sobre as suas credenciais históricas de luta contra o colonialismo e o apartheid, enfrentam agora uma geração que rejeita essa narrativa como irrelevante para as suas vidas quotidianas de (permanente e crescente) desemprego, pobreza e falta de oportunidades. O paradoxo central é que estes partidos – Frelimo, ZANU-PF, MPLA, SWAPO, Chama Cha Mapinduzi – chegaram ao poder através da violência revolucionária, não através de processos democráticos. Nunca foram cultores do debate democrático, da procura de consensos e da priorização do diálogo ao invés da violência. Não têm, todos eles, nenhuma cultura democrática. O método que eles usaram para alcançar o poder – o uso da força bruta através das armas força – predetermina a sua actuação contemporânea, assente numa colectiva lógica centralizada e militarizada que foi aplicada ao Estado, e onde os cidadãos que antes eram instrumentos de libertação tornaram-se súbditos de dominação.
Esta contradição fundamental está agora a ser confrontada por uma Geração Z que, não tendo memória das guerras de libertação, não concede legitimidade histórica automática. Para esta geração, a questão não é “quem nos libertou do colonialismo?”, mas sim “quem nos pode libertar da pobreza, corrupção e falta de futuro?”. Esse é um diferencial qualitativo a ter em superior consideração para a região, a curto prazo. Se eu fosse analista de inteligência diria isso, muito friamente, aos meus chefes do SISE em cada país da região.
Afinal, o que parece claro é que o status quo é insustentável. Por um lado, a combinação de manipulação eleitoral sistemática, repressão violenta, crises económicas, demografia e desemprego juvenil massivo, e uma geração mobilizada que domina as redes sociais e que não tem medo de confrontar forças de segurança armadas, criará uma situação crescentemente explosiva com potencial para degenerar em massiva tragédia humana na região. Por outro lado, a comunidade internacional, particularmente a SADC, a União Africana, a União Europeia (+EUA) e a ONU, enfrentará um teste definitivo de credibilidade. Se estas instituições continuarem a emitir declarações anódinas sem consequências reais para os regimes locais que violam impunemente normas democráticas, tornar-se-ão cúmplices do colapso institucional, da “somalização” (ou “sudanização”) das nossas vidas e do sofrimento humano em larga escala que daí advirá, para a nossa desgraça colectiva.
