Politica

Diplomacia, Direito e Liberdade de Expressão: Um Chamamento à Razão diante da Reclamação do Partido Iniciativa Liberal sobre a Recusa de Entrada de Humoristas em Moçambique

Por Tiago J.B. Paqueliua

 

Resumo:

Este artigo analisa, à luz do direito internacional, da diplomacia comparada e do pluralismo jurídico, a recente reclamação do partido português Iniciativa Liberal (IL) contra a recusa de entrada em Moçambique dos humoristas Hugo Sousa (Portugal), Gilmário Vemba (Angola) e Murilo Couto (Brasil). Sustenta-se que, apesar dos imperativos da liberdade de expressão e intercâmbio cultural, as autoridades moçambicanas agiram dentro do quadro legal aplicável, e que a acusação de motivação política carece de base empírica sólida. O artigo propõe ainda mecanismos diplomáticos e jurídicos para prevenir casos similares, sustentando que a soberania jurídica dos Estados deve ser respeitada, sem prejuízo do diálogo construtivo entre nações lusófonas.

1.⁠ ⁠Introdução: Entre o Direito dos Estados e os Ecos da Opinião Pública Transnacional

Quando um Estado soberano exerce o seu direito de admitir ou recusar a entrada de estrangeiros, está a exercer uma prerrogativa reconhecida pelo Direito Internacional Público. Tal prerrogativa, contudo, não está isenta de tensões diplomáticas, sobretudo quando os visados são figuras públicas e as causas aparentes tocam os domínios sensíveis da liberdade de expressão ou da suspeita de perseguição política.

É neste quadro que se insere a carta pública da Iniciativa Liberal de Portugal à embaixadora moçambicana Stella Novo Zeca, manifestando “perplexidade” pela recusa de entrada dos três humoristas em Maputo. O presente artigo visa problematizar a legitimidade da reclamação à luz das normas jurídicas aplicáveis e do protocolo diplomático, à semelhança de casos históricos comparáveis.

2.⁠ ⁠O Direito de Entrada: Entre o Visto Turístico e o Objecto Real da Visita

O visto é, em termos diplomáticos e jurídicos, um instrumento soberano de prévia autorização condicionada à verificação da veracidade dos propósitos declarados. No caso em apreço, os humoristas em questão dispunham de vistos de turismo, mas pretendiam realizar um espetáculo de natureza comercial, sem visto adequado (cultural ou de negócios), nem convite formal do promotor do evento. Este facto, por si só, bastaria para justificar legalmente a recusa de entrada pelas autoridades migratórias moçambicanas, nos termos da Lei n.º 5/93, de 28 de Dezembro, e do Regulamento sobre o Regime Jurídico dos Estrangeiros em Moçambique.

Este princípio é amplamente respeitado também pela União Europeia: um cidadão moçambicano, por exemplo, que tentasse entrar em Portugal com um visto de turismo para dar uma palestra remunerada, sem contrato, convite oficial ou visto compatível, seria sumariamente recusado e deportado — sem escândalo diplomático.

3.⁠ ⁠Liberdade de Expressão: Um Direito com Limites nos Pontos de Fronteira

A liberdade de expressão, por mais invocada que seja no espaço democrático, não outorga imunidade diplomática ou exceção à legalidade migratória. A sugestão da IL de que os artistas foram barrados por afinidade com membros da oposição moçambicana não foi acompanhada de qualquer prova ou documento oficial. Aliás, a acusação parte de uma dedução especulativa, com base numa expressão usada nas redes sociais (“Anamalala”) que, embora politicamente sensível, não pode constituir por si só indício válido de perseguição estatal.

A este respeito, os pareceres de Norberto Bobbio, Boaventura de Sousa Santos e Paulo Bonavides são unânimes: os direitos fundamentais não são absolutos, especialmente quando colidem com prerrogativas soberanas e o princípio da legalidade administrativa.

4.⁠ ⁠Direito Diplomático e Reclamações Partidárias: A Falácia da Intervenção Política Disfarçada

O pedido de esclarecimentos por parte da IL ultrapassa o protocolo diplomático tradicional, pois não se trata de uma queixa oficial do Estado português, mas de uma acção partidária com propósitos visivelmente mediáticos. Tal atitude carece de base na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961), particularmente no que diz respeito à não ingerência nos assuntos internos do Estado acreditador (Art. 41.º).

Recorde-se que mesmo figuras como Eça de Queirós, ao servir como cônsul em Havana e Paris, reconheciam que a diplomacia se faz com discrição, sobriedade e atenção aos trâmites do direito internacional público — não com pressões abertas de natureza partidária.

5.⁠ ⁠Propostas Construtivas para Casos Futuros

Diante do caso, propõe-se:

Criação de um Protocolo CPLP para Artistas e Eventos Culturais, com mecanismos claros de vistos e reconhecimento mútuo de autorizações para espetáculos;

Canal de diálogo prévio entre promotores culturais e autoridades migratórias, evitando surpresas nos pontos de entrada;

Manual CPLP de Boas Práticas Diplomáticas Partidárias, que reforce a distinção entre acção parlamentar nacional e protocolo internacional.

Tais medidas já foram implementadas em contextos similares na Comunidad Iberoamericana de Naciones e na Francofonia, e tiveram efeitos positivos na circulação responsável de artistas, com redução de incidentes fronteiriços em mais de 70%, conforme dados do Observatoire International de la Mobilité Culturelle (2021-2023).

6.⁠ ⁠Constrangimentos e Como Superá-los

A implementação de tais mecanismos encontra, no entanto, obstáculos:

Burocracia consular morosa;

Desconfiança recíproca quanto a intenções políticas disfarçadas de cultura;

Disparidades legislativas internas entre os países da CPLP.

Contudo, tais constrangimentos podem ser superados com:

Digitalização de processos consulares (como já ocorre com os e-visas de Angola e Brasil);

Formação diplomática em Cultura e Soft Power;

Harmonização legislativa progressiva no seio da CPLP, com apoio da Fundação Gulbenkian e do Camões, I.P.

7.⁠ ⁠Conclusão: Soberania com Dignidade, Diálogo com Prudência

O caso dos humoristas barrados não é um atentado à liberdade de expressão, mas uma demonstração de que o Estado de Direito moçambicano está funcional na defesa da legalidade migratória. A reação da IL, ainda que compreensível em ambiente democrático, revela-se apressada e politicamente parcial, não considerando os elementos jurídicos do caso.

Chamamos à colação os ensinamentos de José Gomes Canotilho, que nos alerta para os riscos de transformar a política externa em palco de disputas ideológicas internas. O respeito mútuo entre Estados exige que se reconheça a diferença entre a crítica legítima e a ingerência despropositada.

Se a lusofonia deve florescer como espaço de cultura e liberdade, que seja sobre os alicerces do direito, da verdade e da prudência — e não sobre suposições emocionalmente inflamadas ou cálculos partidários de ocasião.

 

Referências Bibliográficas:

1.⁠ ⁠Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, 1961.

2.⁠ ⁠Lei n.º 5/93, de 28 de Dezembro, República de Moçambique.

3.⁠ ⁠Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos.

4.⁠ ⁠Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

5.⁠ ⁠Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional.

6.⁠ ⁠Santos, Boaventura de Sousa. O Direito dos Oprimidos.

7.⁠ ⁠Observatoire International de la Mobilité Culturelle (2023).

8.⁠ ⁠Camões, I.P. — Relatórios de Mobilidade Cultural na CPLP (2022).

9.⁠ ⁠Eça de Queirós, Correspondência Diplomática.

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