Por Tiago J.B. Paqueliua
No passado dia 12 de Junho de 2025, durante um evento que antecede as celebrações dos 63 anos da FRELIMO e do cinquentenário da independência nacional, o académico e membro sénior do partido Hélder Jauana, proferiu um discurso que, à superfície, pareceu carregado de coragem e senso crítico. Chamou o seu próprio partido a abrir-se às vozes dissidentes, apelou a reformas profundas, propôs a renovação da liderança, a independência económica, e uma reestruturação mental e institucional.
À primeira vista, estas palavras parecem perfilar-se com os ideais de um verdadeiro académico comprometido com a transformação do seu país.
Contudo, uma análise mais detida revela que tal posicionamento, embora revestido de roupagem intelectual e moral, está gravemente comprometido com contradições históricas e éticas de difícil reconciliação.
O discurso de Jauana deve ser lido não como uma ruptura real com os vícios do sistema, mas como um reposicionamento conveniente de quem, até há pouco tempo, perfilava-se na vanguarda da defesa desse mesmo sistema.
Não estamos perante uma reinvenção ideológica, mas sim diante de uma tentativa de reconfiguração discursiva motivada pelo desgaste visível e crescente do regime.
Jauana, tal como outras figuras que hoje surgem como “críticos internos”, pertence a uma geração que consolidou o modelo autoritário-partidário vigente desde os primórdios da independência.
A súbita epifania reformista, que surge curiosamente quando o sistema mostra sinais de cansaço e de colapso, tem tanto de oportunismo quanto de lucidez. Quando a crítica só emerge no momento da perda de influência ou afastamento dos círculos de poder, ela torna-se menos um acto de bravura e mais uma manobra de sobrevivência política — uma reciclagem estratégica para continuar a respirar dentro do sistema, mas sob nova etiqueta.
Este fenómeno não é exclusivo da FRELIMO. A oposição moçambicana padece do mesmo mal estrutural. A lógica da “disciplina partidária”, tornada mantra, funciona como um mecanismo de silenciamento voluntário. Dentro do partido, diz-se “sim senhor” por conveniência, temor ou esperança de recompensa. Só quando um actor político é marginalizado, perde o acesso a recursos ou é excluído dos centros de decisão é que começa a verbalizar um “não senhor” que, na verdade, representa mais frustração do que princípio. Trata-se de uma obediência comprada e de uma dissidência ressentida.
É neste contexto que se inscreve o fenómeno crescente — e preocupante — da transumância partidária em Moçambique: militantes que saltam de partido em partido, e por vezes regressam, como se as diferenças ideológicas não passassem de meras variações cosméticas. A ideologia desaparece, dando lugar à lógica do estômago: entra-se e sai-se de formações políticas não por convicção, mas por sobrevivência.
A fome tornou-se o principal factor de afiliação e desfiliação partidária. Já não importa se se está na extrema-esquerda ou na centro-direita — o que importa é onde há mais migalhas, contratos, nomeações ou favores. Esta prática normalizou a promiscuidade política e desmoralizou a figura do militante, do eleito e do dirigente.
A proposta de Jauana de que 80% dos órgãos dirigentes da FRELIMO sejam renovados, mantendo 20% de continuidade, ilustra bem esta cosmética do poder. A mera troca de actores, sem alteração da gramática política, apenas perpetua o mesmo modelo.
A substituição de rostos não equivale à regeneração ética. Reformar estruturas sem reformar consciências é como pintar uma casa em ruínas.
Mais ainda, propostas como a nacionalização de recursos minerais, embora relevantes do ponto de vista da justiça económica, podem facilmente degenerar em novos mecanismos de espoliação sob pretexto de soberania. Sem instituições sólidas, com transparência real, escrutínio público e separação de poderes efectivos, tais reformas são apenas uma transferência de controlo das elites transnacionais para as elites locais, com o povo a continuar de fora.
O caso de Armando Guebuza, ex-Presidente da República, que declarou não confiar na Justiça moçambicana no decurso do julgamento das dívidas ocultas, é paradigmático. Fala de uma justiça que durante anos utilizou para consolidar o seu poder e perseguir opositores. Esta incoerência é o reflexo de uma cultura de impunidade e de um sistema onde a crítica só é válida quando já não se detém o poder — nunca enquanto ele é exercido.
É, pois, imperioso que a academia, os movimentos cívicos e os sectores ainda não capturados do espaço público moçambicano recusem a tentação de celebrar críticas que não nascem do princípio, mas da circunstância.
A verdadeira mudança não virá de dentro do sistema que perpetua a exclusão e a pobreza. Virá daqueles que, mesmo sem poder, mantêm coerência, recusam conivências, e têm a coragem de dizer “não senhor” quando ainda poderiam colher benefícios do seu silêncio.
Moçambique não precisa de críticos envergonhados ou reciclados. Precisa de ruptura ética, de coragem fundadora e de uma nova geração de lideranças que não nasçam da sombra dos mesmos corredores onde se gerou a decadência nacional.