Sociedade

QUANDO OS “BAKA BAKA” VIRAM INIMIGOS: Cabo Delgado entre Alshababs e FADM

Foto: Estacio Valoi /FDS
Foto: Estacio Valoi /FDS

 

Jerry Maquenzi

A guerra em Cabo Delgado tem sido narrada, ao longo dos últimos anos, como um conflito assimétrico entre insurgentes islamistas, popularmente chamados de alshababs, e o Estado moçambicano, representado pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). Mas uma conversa informal com um membro activo da Força Local em Mueda, recolhida em shimakonde e traduzida para português, revela uma verdade perturbadora: parte da população já não vê nos militares da FADM (Forças Armadas de Defesa de Moçambique) protectores, mas sim predadores. Para muitos, os “baka baka” – nome popular dado aos militares para designar os “padrões oficiais de camuflagem dos fardamentos” – transformaram-se em inimigos internos, tão temidos quanto os próprios insurgentes.

Eis a transcrição parcial do testemunho em shimakonde:

Helo, vó va ‘baka baka’ vakututenda vino akuno. Madudi vavé ku Diaca, kuomba [diuthi]. Va baka baka vakuashi? Vó vetu vó. Mukavakamula? Kuvakamula dashi, vanao vankutikinanga dyoko? Vanao valotha kutulimyanga, vanao mya kenga havi vankumanya. Vanemba akuno vankutangola dashi, vanao vakuabyaha va Força Local, muachani mene kuvaujia? Havaujie, vauke kuao ku Maputo, vankupita havabya vanu…”

Na tradução:

Os ‘baka baka’ estão a aprontar coisas aqui. Anteontem estavam em Diaca a disparar. Quem são os baka baka? São os nossos [militares da FADM]. Não os capturam porque? Capturar como, acha que eles (governantes) desconhecem? Eles querem nos extinguir, estes problemas eles têm conhecimento. Os jovens dizem o seguinte, eles (FADM) estão a matar as Forças Locais, porque é que não os devolvem. Que os devolvam para as suas terras em Maputo, estão a matar pessoas…”

A voz local é clara: a população sente-se abandonada, traída e violentada por aqueles que deveriam protegê-la. Quando os “baka baka” deixam de ser aliados e passam a ser identificados como inimigos, abre-se uma ferida que ameaça não apenas a segurança da província, mas a própria coesão nacional de Moçambique.

  1. O Testemunho Local: Quando os Protetores se Tornam Predadores

A força desta narrativa reside precisamente no detalhe humano. O interlocutor não é um analista distante nem um académico em gabinete: é um membro da Força Local em Mueda, que vive diariamente o risco da insurgência. O relato prossegue:

Aqui não há paz. Os governantes estão em paz. Aqui eles (militares) vêm oportunidade, vêm disparar e depois das populações fugirem das suas casas, eles entram e carregam os bens. De manhã, quando as pessoas se encontram, dizem que ontem entraram os alshababs, enquanto que não foram eles (alshababs).”

Esta inversão é gravíssima. A população já não sabe distinguir entre insurgentes e militares: ambos entram em aldeias, ambos matam, ambos saqueiam. Para as vítimas, a diferença entre um jihadista e um soldado deixou de ser relevante, ambos são agressores.

Agora, imagine-se o panorama vivido por esses soldados: mais de 300, que combateram o terrorismo por um ano inteiro, sem receber qualquer pagamento, e foram depois simplesmente dispensados – deixados a “aguardar em casa”, já sem salário nem apoio logístico (Machava, 26.08.2025; Kanumbo, 28.08.2025). O Estado Maior-General, por sua vez, afirmou que muitos desse grupo tentavam reintegração, mas que o processo não respeitou as normas legais, resultando na sua “retracção às zonas de origem”, sem qualquer reconhecimento formal ou compensação (Bote, 02.09.2025).

Dessa forma, não se trata apenas de um conflito com insurgentes ou de abusos atribuídos às FADM. Trata-se de um conflito interno na própria estrutura militar: homens que deram a vida por seu país sentem-se descartados. Para as Forças Locais, esse ressentimento transborda em violência e desconfiança – comportamento facilmente interpretado pelas comunidades como predador e não protector.

  1. O Perigo Imediato para a Região

As acusações vindas da Força Local constituem um perigo de múltiplas dimensões:

  • Perigo para a segurança da população: se os militares, que deveriam defender, são vistos como saqueadores, a população fica sem refúgio.
  • Perigo para a moral das Forças Armadas: ao serem acusadas de matar e roubar, as FADM perdem legitimidade perante os civis.
  • Perigo político: estas percepções podem ser exploradas pelos insurgentes, que se apresentam como alternativa de justiça contra abusos estatais.

O risco maior é o da erosão da confiança entre Estado e cidadãos. Num conflito como o de Cabo Delgado, onde a confiança é a principal arma de defesa, perder o apoio popular é perder a guerra.

  1. História de Militarização e Desconfiança

A relação entre Cabo Delgado e as forças militares nunca foi simples. Durante o período colonial, a província conheceu as incursões da tropa portuguesa contra as populações makondes. Na guerra civil, a região foi palco de combates ferozes. Hoje, com a insurgência, volta a ser militarizada.

A repetição de abusos cria um trauma coletivo: a memória de violência passada mistura-se com a experiência presente. A consequência é um sentimento de fatalismo: nós de Cabo Delgado estamos destinados a sofrer, como disse o interlocutor.

Mas a dimensão mais explosiva deste problema é o risco de leitura inter-regional. Quando a população diz: Que os devolvam para as suas terras em Maputo, está a transformar a presença das FADM num marcador regional. Os soldados deixam de ser “moçambicanos” e passam a ser vistos como “homens do Sul”, enviados para massacrar “o povo do Norte”. Esse discurso pode alimentar tensões Norte-Sul de consequências imprevisíveis.

  1. A Responsabilidade do Estado

Em face de estas acusações, não basta silêncio ou negação. É necessário agir.

  • O Conselho de Estado deve encarar este problema com urgência, antes que se torne incontrolável.
  • O Ministério da Defesa precisa investigar e punir os responsáveis por abusos, para não manchar toda a corporação.
  • Os Serviços Secretos devem compreender que a erosão da confiança em Cabo Delgado é, em si, uma ameaça à segurança nacional tão grave quanto à insurgência.

Ignorar o problema ou abafá-lo seria um erro histórico.

  1. O Peso Simbólico dos Makondes

A etnia makonde tem um lugar especial na história de Moçambique: foarm o povo que ofereceu os seus filhos à luta de libertação nacional, sustentando logisticamente e moralmente a FRELIMO. Os makondes são símbolo de resistência, coragem e patriotismo.

Mas quando, hoje, um makonde da Força Local diz que os filhos dos makondes estão a ser mortos por militares da FADM, há uma inversão simbólica perigosa: os herdeiros da luta de libertação são agora vítimas do Estado libertador.

Eu próprio, como filho de um ex-militar da luta de libertação, sinto a gravidade deste testemunho. Não se trata de mera acusação sem fundamento. Trata-se de um alerta de que a memória da libertação está a ser corroída pelo presente de violência e abuso.

  1. O Silêncio Cúmplice e os Riscos Futuros

O maior perigo não é apenas o que os militares fazem, mas o que o Estado deixa de fazer. O silêncio pode ser interpretado como cumplicidade. A ausência de responsabilização alimenta a ideia de que há uma decisão política para “extinguir” as populações locais.

É nesse vazio que os insurgentes encontram espaço para recrutar. Se o povo não confia no Estado, facilmente pode ser seduzido pela narrativa jihadista de justiça contra a opressão.

Pior: a erosão da legitimidade do Estado em Cabo Delgado pode abrir caminho a uma guerra civil não declarada, onde insurgentes, militares e populações se confundem num ciclo interminável de violência.

  1. Conclusão

Cabo Delgado vive hoje entre dois fogos: os insurgentes e os militares. Para a população, pouco importa quem dispara: importa que morrem civis, importa que se saqueiam casas, importa que se perde a dignidade.

Quando os “baka baka” – os militares da FADM passam a ser vistos como inimigos, a guerra em Cabo Delgado perde sentido. Deixa de ser uma luta pela integridade territorial contra o terrorismo, e passa a ser um conflito de Estado contra cidadãos.

É urgente quebrar este ciclo. O Estado deve ouvir as vozes locais, investigar as acusações, punir os culpados e restaurar a confiança. Caso contrário, a paz em Cabo Delgado será apenas uma miragem, e Moçambique arrisca-se a carregar uma ferida aberta que dividirá o país entre Norte e Sul, entre governantes e governados, entre libertadores e saqueadores.

A paz não virá das armas, mas da justiça. E enquanto os “baka baka” continuarem a ser vistos como inimigos, Cabo Delgado continuará a arder.

8.    Recomendações

Se aceitarmos que as acusações contra os “baka baka” são sérias – e tudo indica que são, então é necessário um plano político e institucional de confiança que permita inverter a narrativa de traição e abuso. Aqui estão algumas medidas urgentes:

  • Reforço da disciplina militar e tribunais de campo
    • O Ministério da Defesa deve instituir mecanismos de auditoria interna nas operações em Cabo Delgado.
    • Soldados acusados de pilhagem, violência sexual ou homicídios de civis devem responder de imediato em tribunais militares locais.
    • Essa transparência mostraria à população que o Estado não tolera abusos em seu nome.
  • Rotação territorial das tropas
    • A permanência prolongada de destacamentos em aldeias aumenta o risco de conluio, corrupção e abusos.
    • Recomenda-se uma rotação periódica das tropas, para evitar a criação de redes de pilhagem e comércio paralelo.
  • Maior protagonismo das Forças Locais
    • A Força Local, composta por jovens da própria província, tem maior legitimidade junto das comunidades.
    • O Estado deve investir na sua formação, logística e disciplina, ao invés de tratá-la como força secundária e descartável.
  • Comunicação transparente com as comunidades
    • O governo precisa abandonar o discurso triunfalista e reconhecer publicamente que há falhas graves.
    • Reconhecer o problema não é enfraquecer o Estado; pelo contrário, é dar um passo decisivo para recuperar legitimidade.
  • Monitoria independente dos direitos humanos
    • ONGs, organizações comunitárias e até observadores internacionais devem ter acesso irrestrito às zonas de conflito para monitorar violações.
    • A presença de olhos externos pode dissuadir abusos e criar um registo credível de acontecimentos.

As populações de Cabo Delgado não pedem muito: pedem apenas segurança, dignidade e justiça. A guerra contra a insurgência pode até ser vencida militarmente, mas será sempre perdida politicamente se a população não confiar nas suas próprias forças armadas.

Restaurar essa confiança é possível, mas exige coragem política, transparência institucional e respeito pela verdade. Sem isso, os “baka baka” continuarão a ser vistos como inimigos, e essa será a maior derrota histórica de Moçambique.

Referências

Bote, António. (02.09.2025). Cabo Delgado: FADM desmentem alegado abandono de militares no combate ao terrorismo. Disponivel em: https://www.zumbofm.com/index.php/noticias/item/7079-cabo-delgado-fadm-desmentem-alegado-abandono-de-militares-no-combate-ao-terrorismo.

Machava, Ricardo (26.08.2025). Militares sentem-se abandonados pelo Estado após combate ao terrorismo em Cabo Delgado. Dsiponivel em: https://opais.co.mz/militares-sentem-se-abandonados-pelo-estado-apos-combate-ao-terrorismo-em-cabo-delgado/.

Kanumbo, John. (28.08.2025). Como confiar na porta da frente se quem a guarda reclama de fome? Disponivel em: https://opais.co.mz/como-confiar-na-porta-da-frente-se-quem-a-guarda-reclama-de-fome/.

(Moz24h)

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