Por Luis Nhachote
Quando eu morrer, porque esse dia nunca tarda aos comuns mortais que somos, aos que ficam, evitem e se demarquem da hipocrisia dos elegias de que não se falam mal dos mortos.
Sobretudo se as marcas do morto tenham marcas indeléveis de barbarie.
Esse dogma precisa ser desamarrado porque os mortos, antes de o serem e confirmados no consignado atestado de óbito, foram humanos que atravessaram a vida e escreveram as suas histórias nas páginas da vida.
O último morto de quem tenho estado a ler inúmeras hossanas é o coronel do Vale do Zambeze que pisou o solo terrestre por oito décadas, isto é, Sergio Viera a quem o Governo acaba de conceder um dia de luto nacional.
O primeiro ministro do governo de Filipe Nyusi que decretou o dia de hoje, como dia de luto, segundo ouvi na televisão, o descreveu de “Honesto, trabalhador e apaixonado pela patria”.
Carlos Agostinho do Rosário tem as suas razões de o afirmar, mas nos outros padecemos do problema de não sofrer de lapsos de memória. Aliás, o Secretário-Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), Carlos Rufino Paradona Roque, de livro em punho, tambem lamentou a perda do também poeta Sérgio Vieira. Os escritores estão de luto e creio que nesta altura uns tantos estão a devorar vorazmente o “TAMBÉM MEMÓRIA DO POVO”, para entenderem a sua poesia….
O coronel está morto e está a ser exaltado pelo seu percursso nacionalista, de vanguardista da causa nacional e um dos principais actores da construção do Estado Moçambicano. Isso tudo é verdade.
Os académicos também devem estar combalidos de tanta dor, afinal o coronel dirigiu o Centro de Estudos Africanos (CEA), onde assinava as suas pesquisas academicas com o pomposo titulo de coronel….
O Sérgio Vieira e as suas múltiplas facetas precisa de ser recordado como um dos maiores algozes da história recente de Moçambique. Segundo se pode depreender da biografia do Reverendo Uria Simango, foi o agora finado coronel quem escreveu a “confissão de arrependimento” lida em Nachingwea e anos mais tarde, enquanto governador do Niassa, todos os “reaccionários” foram extrajudicialmente executados.
Quando colunista dominical, num certo dia em 2007, na sua «Carta a muitos amigos», o coronel escreveu uma crónica com o título “Justiça e ignomínia” onde manifestava o seu total repúdio sobre a forma como foram conduzidos os processos que culminaram com a execução de Sadam Hussein, e outros seus acólitos.
E para manifestar o seu repúdio, o coronel escreveu e passamos a citar: “Mas, porque um Estado, como primeira obrigação em relação à pessoa humana, deve proteger a vida do cidadão, então existindo a pena de morte, o retirar o direito à vida, nunca pode surgir como palhaçada, uma vingança e necessita de se revestir de grande dignidade” (sic).
Quando o partido de que era membro sénior, o Coronel saiu de fresco das matas e cheirando ainda o pó das armas, embriagado pelos ensinamentos de Marx e Lenine, as práticas de eliminação de outros foram marca dominante. Isso está amplamente documentado.
Com uma diferença: Sadam Hussein pelo menos teve direito a um julgamento “fantoche” e os cá da casa não.
Na aurora da nossa perene democracia o coronel nao se fez de rogado e um dia, em plena Assembleia da Republica disse, a plenos pulmões e de viva voz para que todos os moçambicanos ficassem a saber, que uns moçambicanos mataram outros sem direito a julgamento porque eram “reaccionários” e “traidores da causa nacional”. “Matamos” disse ele
Um documento que viria a público muitos anos depois explica o papel do coronel e outros do pelotão da frente dos fuzilamentos:
“No espírito das tradições, usos e costumes da luta de libertação nacional, o Comité Político Permanente da Frelimo reuniu e condenou por fuzilamento os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, os quais já foram executados: Uria Simango; Lázaro Kavandame; Júlio Razão Nilia; Joana Simião e Paulo Gumane, em ordem a evitar possíveis reacções negativas, nacionais ou internacionais, que podem advir em consequência destes contra-revolucionários, a comissão política publica esta acta como decisão revolucionária do partido Frelimo e não como acta judicial”.
Na mesma nota de fuzilamento “no espírito das tradições, usos e costumes da luta de libertação nacional”, adiante, ficou-se a saber que:
“Foi decidido nomear um comité para compilar o dossier e preparar a comunicação pública”.
“O camarada Comandante-em-chefe decidiu que o comité fosse dirigido pelo camarada Sérgio Viera e adicionalmente terá os seguintes camaradas: Óscar Monteiro, José Júlio de Andrade, Matias Xavier e Jorge Costa”.
“O povo moçambicano não sofre de amnésia” escreveu ainda o coronel Vieira na sua crónica dominical. Nós tambem, felizmente, não padecemos de amnésia.
Pelo menos os “fantoches” do Iraque fizeram questão de tornar público onde se encontram as tumbas das suas vítimas.
Já o coronel com direito histórico de luto nacional nunca se dignou a dar uma mínima ideia acerca do local onde foram sepultados os famosos “reaccionários”. Nem para o sossego das famílias daqueles “malditos reaccionários”. Até os chineses devolvem os cadáveres às famílias das suas vítimas.
Noutro dia, erramos num caminho para ouvir um relato brutal de quem o coronel, nos seus tempos áureos de Ministro da Segurança, teve o desplante de queimar beatas dos cigarros no seu corpo. Alias o Migueis Lopes Junior, gritou até fixar rouco, chamando-o de “Serginho das Beatas”. Um punhado de relatos pugentes sobre a passagem do coronel, podem ser ouvidos por gentes que atravessaram os anos duros da Republica popular.
Deve ser por isso que o coronel escreveu o poema Cegos, onde diz a dado passo
Fomos como cegos,
Tropeçando nas pedras da ignorância, camaradas!
O que o coronel não escreveu, foi uma nota de arrependimento ou pedido de desculpas pelo seu papel no fuzilamento de outrora camaradas de trincheiras, cujo crime foi ousar pensar diferente. (Moz24h)