Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
Este artigo-ensaio argumenta que o desenho institucional do sistema multilateral — em particular o Conselho de Segurança da ONU, capturado pelo poder de veto, e a fragilidade política do Tribunal Penal Internacional (TPI) — favorece soluções de “paz sem justiça”. Em Moçambique, a ONUMOZ encerrou a guerra civil (1992–1994) através de eleições e DDR, mas com amnistia ampla, exclusão das vítimas e ausência de mecanismos de verdade, reparação e responsabilização, abrindo espaço à impunidade estrutural e a reincidências (como a junta militar da RENAMO) e a padrões semelhantes em Cabo Delgado. Em Gaza, apesar de medidas provisórias do TIJ e de iniciativas do TPI, a responsabilização é obstruída por vetos, boicotes e sanções políticas; o custo humano recai sobre civis (mulheres, crianças, idosos, jornalistas e fiéis), o que contraria a narrativa de que “os mortos são do Hamas”. Defende-se um paradigma de justiça transicional centrada nas vítimas — com inclusão efectiva, verdade, reparações e responsabilização — como condição de paz duradoura, e propõe-se que Moçambique utilize a sua posição na ONU para promover reformas e práticas que invertam o incentivo de que “o crime compensa”.
Palavras-chave:
ONU; Conselho de Segurança; veto; TPI; TIJ; Gaza; Moçambique; ONUMOZ; DDR; justiça transicional; impunidade; reparações; vítimas; sanções.
Introdução
A ONU nasceu para preservar a paz, promover direitos humanos e assegurar autodeterminação. Porém, o seu rendimento é desigual e fortemente condicionado pela geopolítica. Em Gaza e no caso moçambicano, evidencia-se uma paz imediata obtida à custa da justiça, com exclusão das vítimas e normalização da impunidade.
1) O bloqueio estrutural da ONU
O Conselho de Segurança (CSNU) é o único órgão com poder para impor sanções vinculativas. A arquitectura do veto dos cinco membros permanentes (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) transforma crises em reféns de interesses nacionais. No dossiê Israel–Palestina, vetos sucessivos travam cessar-fogos robustos ou sanções; no que toca ao Hamas, divisões políticas e trocas de exigências (“sanções a X só se houver simultaneamente a Y”) produzem paralisia. A Assembleia-Geral dispõe de força política e simbólica, mas não coerciva.
2) O TPI sob ameaça
O TPI é formalmente independente, mas depende de cooperação estatal. Grandes potências (EUA, Rússia, China, Israel) estão fora do Estatuto de Roma e, quando visadas, ameaçam, boicotam ou sancionam o Tribunal. Isso limita a eficácia das investigações (incluindo no território palestiniano) e transmite a mensagem de que a justiça internacional recai sobretudo sobre periferias desprovidas de escudos geopolíticos.
3) ONUMOZ e a paz sem justiça em Moçambique
A ONUMOZ estabilizou o pós-guerra com cessar-fogo, eleições e DDR, mas ancorada numa amnistia geral e sem verdade, reparações ou responsabilização. As vítimas ficaram fora da mesa; os beligerantes foram reciclados como actores políticos e económicos. O resultado foi impunidade consolidada e recorrência: junta militar da RENAMO (2019–2021), acomodações político-militares; e, hoje, em Cabo Delgado, prenúncios de repetir a fórmula “diálogo + amnistia + DDR” sem justiça para quem sofreu.
4) Gaza e o paralelismo da impunidade
Em Gaza, a retórica de que “os mortos eram do Hamas” colide com relatórios internacionais que apontam maioria civil entre as vítimas, incluindo jornalistas e fiéis em locais de culto. O TIJ determinou medidas provisórias (prevenir actos de genocídio, permitir ajuda) e o TPI avançou com pedidos de mandados contra dirigentes de ambos os lados por crimes internacionais. Todavia, sem mecanismos coercivos e sob pressões políticas (incluindo sanções contra o TPI), a responsabilização tropeça — e os custos humanos acumulam-se.
5) O incentivo perverso: “o crime compensa”
Quando a “paz” recompensa perpetradores com amnistias, integração e recursos, enquanto as vítimas permanecem invisíveis, cristaliza-se a racionalidade de que a violência compra lugar na mesa. Sem verdade e reparações, a memória de injustiça alimenta novas violências.
Conclusão — Para lá da paz sazonal
O modelo atual da ONU é insuficiente para paz com justiça. Propõe-se um roteiro orientado pelas vítimas:
1. Inclusão das vítimas em negociações e desenho institucional;
2. Verdade (comissões independentes, arquivo público, memorialização);
3. Reparações materiais e simbólicas;
4. Responsabilização (combinação de justiça internacional, jurisdição nacional e mecanismos híbridos);
5. Garantias de não-repetição (reformas das forças de segurança, justiça e governação).
Moçambique pode liderar, na ONU e regionalmente, a defesa de códigos de conduta contra o abuso do veto em atrocidades em massa e a promoção de justiça transicional robusta nos seus próprios processos.
Glossário
CSNU (Conselho de Segurança da ONU): Órgão com mandato para paz e segurança internacionais; pode impor sanções vinculativas.
Veto: Poder dos cinco membros permanentes do CSNU para bloquear resoluções substantivas.
TIJ (Tribunal Internacional de Justiça): Julga disputas entre Estados e emite medidas.
TPI (Tribunal Penal Internacional): Julga indivíduos por genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade; depende de cooperação estatal.
DIH (Direito Internacional Humanitário): Regras de condução de hostilidades (distinção, proporcionalidade, precauções).
DDR: Desarmamento, Desmobilização e Reintegração de ex-combatentes.
Justiça transicional: Conjunto de mecanismos (verdade, justiça, reparações, reformas) para lidar com legados de violência massiva.
Reparações: Medidas materiais e simbólicas de compensação e restauração de direitos às vítimas.
Amnistia: Perdão jurídico geral; pode colidir com obrigações internacionais de processar crimes graves.
Impunidade estrutural: Situação em que instituições e práticas consolidam a não-responsabilização de perpetradores.
Epílogo — O lugar das vítimas
A paz que não nomeia as vítimas, que não regista o que lhes foi feito e que não restaura os seus direitos, não é paz: é apenas interregno.
Em Moçambique, como em Gaza, a História cobra sempre o preço dos silêncios. Países imponentes — Moçambique incluído — não são espectadores: podem ser curadores da memória e arquitectos de um multilateralismo com dentes, onde a dignidade humana não dependa do patrocínio de potências. De cabeça a funcionar verdadeiramente não se abrirá outra página no concerto das Nações?
Referências Bibliográficas
1. Carta das Nações Unidas, arts. 24 e 27.
2. TIJ (ICJ), Application of the Genocide Convention in the Gaza Strip (South Africa v. Israel), Ordem de 26 Jan. 2024 e Ordem de 24 Mai. 2024.
3. TPI (ICC), Gabinete do Procurador: Applications for Warrants of Arrest — Situation in the State of Palestine, 20 Mai. 2024.
4. OCHA/ONU: Gaza Hostilities — Situation Reports (2023–2025).
5. UNRWA: Operational Updates on Gaza (2024–2025).
6. CPJ — Committee to Protect Journalists: Journalists Killed — Israel–Gaza War (2023–2025).
7. Al Jazeera Media Network, comunicado sobre a morte de Ismail al-Ghoul e Rami al-Rifi, 31 Jul. 2024.
8. Patriarcado Ortodoxo de Jerusalém, comunicado sobre o ataque ao Complexo da Igreja de São Porfírio, 19–20 Out. 2023.
9. Acordo Geral de Paz de Moçambique (Roma, 1992) e legislação de amnistia subsequente.
10. Relatório Final da ONUMOZ (Secretário-Geral da ONU, 1994).
11. IESE — Instituto de Estudos Sociais e Económicos (2008–2021). Relatórios sobre DDR e violência política em Moçambique.
12. Literatura de justiça transicional.
13. Teitel, R. Transitional Justice (2000).
14. Hayner, P. Unspeakable Truths (2011).
15. De Greiff, P. The Handbook of Reparations (2006).
16. Sikkink, K. The Justice Cascade (2011).