Opiniao

O Jubileu da Trapaça – Uma Reflexão sobre a Saúde da Nação e a Doença do Poder

 

Por Tiago J.B. Paqueliua

Por ocasião do cinquentenário da independência de Moçambique, em ensaio crítico e de denúncia, em resposta à reportagem de “O País”, 9 de Junho de 2025.

Cinco décadas depois da proclamação da independência nacional, Moçambique prepara-se para celebrar o seu jubileu com os trajes esfarrapados de um Estado fingido e os adornos decadentes de uma república que há muito traiu os seus próprios fundamentos.

Se há coisa que se mantém saudável neste solo fatigado, é o cinismo da elite dominante — essa classe política encastelada nos salões refrigerados do poder, enquanto o povo, esse corpo doente da nação, sangra em filas intermináveis de hospitais fantasmas, onde se prescrevem receitas com os olhos postos no telemóvel e a alma já hipotecada à indiferença.

No recente discurso do Ministro da Saúde, Ussene Isse, que jurou mão pesada contra os profissionais de saúde arrogantes, ouviu-se mais um eco da ladainha secular dos caloiros ministeriais.

Revestido de indignação teatral, o governante recorreu ao já conhecido artifício do bode expiatório, tentando ocultar a necrose do sistema com uma gaze retórica. Prometeu ser “implacável”, como se tal promessa não fosse já, por si só, um insulto à memória colectiva de um povo que há 50 anos acredita, morre e renasce à espera de justiça.

Mas, permitam-me recordar, com amarga sobriedade: Samora Moisés Machel, o pai idolatrado da independência, foi talvez o presidente que mais violentamente vociferou contra a opressão do povo. Contudo, jamais sancionou os predadores instalados no topo da pirâmide. O seu punho de ferro esmagou apenas o peixe miúdo.

Joaquim Chissano, por sua vez, foi rebaptizado pelo próprio povo com epítetos infames — “Mariazinha”, “Cabrititista”, “Espírito deixa-andar” — retratando a sua cobardia moral e fidelidade à casta dominante.

Guebuza, engenheiro das “acções enérgicas”, usou a justiça como martelo político apenas contra os que já haviam perdido o amparo da máfia interna.

Nyusi, com o mesmo livro de truques, apenas mudou os nomes no banco dos réus, preservando intacto o pacto de sangue com o “status quo”.

E agora, Daniel Chapo, posto à testa do teatro republicano, é apenas mais um actor da mesma farsa, obrigado a defender os interesses de uma FRELIMO que há muito se converteu de movimento libertador em cartel governamental.

A retórica do Ministro Isse, ainda que salpicada de verdade vivida nos corredores hospitalares, não passa de um exercício de autoabsolvição institucional. Finge-se indignado com a arrogância dos profissionais, mas silencia a origem da doença: um sistema construído para falhar, um edifício apodrecido onde só se ascende mediante pagamento de propinas, favores sexuais ou filiação partidária. Nos hospitais públicos, para dar à luz com segurança e dignidade é necessário pagar à parteira — e quem não paga, que morra.

Para ser admitido como servente, paramédico, médico ou administrativo, é preciso desembolsar entre cinquenta a duzentos e cinquenta mil meticais — um investimento corrupto que será recuperado através da extorsão quotidiana ao paciente indefeso.

E o que dizer dos corpos dos manifestantes assassinados, transportados das morgues aos cemitérios em valas comuns, por vezes sem órgãos, em práticas que sussurram crimes inomináveis?

Há quem diga, sem cobardia e com razão, que o verdadeiro cancro do sector da saúde é o clientelismo institucionalizado, a frelimização da moral pública, o desprezo visceral pelo pobre, que serve apenas como número nas estatísticas e degrau nas escadas do poder.

Mas que espécie de independência é esta?
Uma independência cujo cinquentenário é celebrado com a mesma arrogância com que se pisa o povo no balcão do hospital.
Uma independência onde o “cidadão” ainda se ajoelha perante o “camarada”.

Uma independência que se assemelha cada vez mais a um colonialismo com feição nativa, um neocolonialismo endógeno onde o chicote mudou de mão, mas continua a estalar nas costas do mesmo povo.

Conclusão

Que do Jubileu se vá à Justiça. Chegados ao cinquentenário, não é uma celebração que se impõe — mas sim uma confissão colectiva. Moçambique precisa de parar de cantar hinos de louvor à sua elite e começar a cantar salmos de arrependimento.

Já não é tempo de festas patrióticas com bandeiras e discursos; é tempo de um novo Êxodo político, onde o povo saia finalmente da terra da servidão frelimista rumo a uma Canaã de verdadeira liberdade.

É preciso reconstruir a nação sobre alicerces de ética republicana, justiça distributiva, transparência institucional, e renovação espiritual. É tempo de fazer a catarse do poder, do Estado e da consciência social — ou então, os próximos cinquenta anos serão apenas a continuação de uma longa marcha rumo ao abismo.

Geoestrategicamente, Moçambique não é apenas um território cobiçado por multinacionais e consórcios militares: é também uma alma coletiva à deriva.

Antropossociologicamente, é uma sociedade que normalizou o abuso e o tráfico de influência como moeda quotidiana.

Filosoficamente, é uma república sem logos.
Juridicamente, é uma selva onde o direito é privilégio.

Teologicamente, é um povo que já não acredita na justiça divina nem na humana.

Eticamente, é um corpo moralmente paralisado.
Apologeticamente, é um Estado que já não sabe defender o seu próprio povo.
Moralmente, é uma vergonha coletiva que exige expiação pública.

E neste contexto, qualquer promessa ministerial que não se traduza em reformas estruturais é apenas arrogância com microfone, mentira com gravata, e violência disfarçada de esperança.

Que o Jubileu dos 50 anos não seja o som de trombetas de festa, mas o dobrar de sinos que anunciam o fim de um ciclo de opressão. Porque, se nada mudar, não será o povo a celebrar — será a cleptocracia a brindar à eternização do seu domínio.

Por um Moçambique liberto dos seus libertadores. Por um futuro onde o povo volte a ser sujeito da história, e não objecto de promessas vãs.

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