Politica

O FIM DA AUTORIDADE EM MOÇAMBIQUE:

 

Cabo Delgado sob Cerco entre a Insurgência e o Papel do Socorro Ruandês

Tiago J. B. Paqueliua

Resumo

Este artigo analisa a crise de segurança em Cabo Delgado, Moçambique, destacando a fragilidade do Estado em garantir soberania e estabilidade. A partir da avaliação de ataques recentes, da dependência de intervenções estrangeiras e da ausência de um plano integrado de governação, argumenta-se que a autoridade estatal está comprometida, tornando-se muitas vezes simbólica. Fundamentado em perspectivas de teóricos como Frantz Fanon, Paulo Freire e Gilles Cistac, e complementado por especialistas moçambicanos, o estudo propõe a necessidade urgente de uma abordagem multidimensional para restabelecer o controlo territorial, promover desenvolvimento local e fortalecer o Estado de direito. Além disso, o artigo integra uma análise comparativa internacional para extrair lições e estratégias aplicáveis ao contexto moçambicano, destacando erros e acertos em políticas de combate ao terrorismo.

Palavras-chave:
Cabo Delgado; terrorismo; segurança; governação; soberania; assistência humanitária; Moçambique; insurgência; desenvolvimento integrado; direitos humanos; participação comunitária.

1.⁠ ⁠Introdução

Desde 2017, a província de Cabo Delgado tem sido palco de uma grave crise de segurança marcada por ataques armados, insurgência e deslocamentos massivos. O Estado moçambicano enfrenta sérios desafios para garantir a ordem, segurança e bem-estar das populações locais. O episódio do ataque em 9 de agosto de 2025, na EN380, distrito de Quissanga, ilustra a persistente vulnerabilidade da região, expondo uma realidade onde a presença estatal se torna, por vezes, apenas simbólica. Este artigo busca analisar os fatores estruturais que agravam esta situação, as implicações para a soberania e a governação, e as possibilidades de superação a partir de uma abordagem integrada.

Para além disso, será integrada uma análise crítica do modus operandi do combate ao terrorismo em Moçambique, contrapondo-o a experiências internacionais que ajudam a identificar práticas que aprofundam a crise e outras que promovem a estabilização, com vistas a sugerir estratégias mais eficazes para o país.

2.⁠ ⁠Revisão de Literatura e Referenciais Teóricos

O pensamento crítico de Fanon (1961) enfatiza que a libertação política é insuficiente se não estiver acompanhada da efetiva proteção social e da justiça para o povo, um tema central para compreender a fragilidade da autoridade estatal em Cabo Delgado. Paulo Freire (1970) destaca a importância da conscientização e participação comunitária na construção da liberdade e da paz duradoura. No contexto moçambicano, o jurista Gilles Cistac (2013) reafirmava a centralidade do Estado de direito e da Constituição como pilares para a construção de uma governação legítima e eficiente. O sociólogo Bembe (2019) alerta para os riscos do centralismo e clientelismo que enfraquecem as instituições e afastam o Estado das populações locais. Nuvunga (2023) e Guirringane (2024) têm sublinhado a importância de uma abordagem multidimensional que combine segurança, desenvolvimento socioeconómico, direitos humanos e participação comunitária para a estabilização da região.

3.⁠ ⁠Metodologia

O presente estudo é fundamentado numa análise documental e crítica de relatórios oficiais, notícias, declarações de especialistas e literatura acadêmica, buscando integrar diferentes perspectivas para construir um diagnóstico abrangente da situação em Cabo Delgado. Dados estatísticos preliminares, disponibilizados pela Procuradoria-Geral da República e organizações internacionais, complementam a análise qualitativa.

4.⁠ ⁠Análise e Discussão

O ataque do dia 9 de agosto de 2025 na EN380, local estratégico para o acesso à província, é apenas um episódio num padrão recorrente de insegurança. Conforme dados preliminares, no primeiro semestre de 2025 registaram-se 35 incidentes armados na região, com mais de 150 vítimas. Essa persistência demonstra falhas estruturais, como a ausência de inteligência preventiva eficaz e a falta de coordenação entre as forças de segurança. Feijó (2024) argumenta que o abandono territorial por parte do Estado cria vácuos de poder rapidamente preenchidos por grupos armados, que impõem um modelo paralelo de governação. Este modelo desafia diretamente a soberania do Estado, reforçando a alerta de Fanon (1961) sobre a fragilidade da autoridade quando o Estado falha na proteção do povo.

A intervenção militar das tropas ruandesas é indicativa da incapacidade das Forças de Defesa e Segurança (FDS) locais em garantir a segurança necessária. Tal dependência pode comprometer a soberania operacional de Moçambique, como destacam Nuvunga (2023) e Valoi (2024). Além disso, a presença de forças externas sem um controlo nacional efetivo pode contribuir para um modelo híbrido de governação, onde o governo central assume um papel simbólico. Mosca (2024) aponta que a falta de transparência e justiça na gestão dos recursos naturais em Cabo Delgado alimenta o ciclo de violência, na medida em que atores internos e externos exploram o conflito para garantir interesses econômicos particulares, sobretudo em relação aos recursos minerais e hidrocarbonetos.

Em complemento às dificuldades de segurança e governação, a resposta humanitária oficial tem suscitado críticas significativas. Em declaração pública recente, o Ministro da Administração Estatal e Função Pública, Impissa (2025), comunicou à nação que a obrigação legal do governo em assistir deslocados internos e outras vítimas do terrorismo é limitada a um período de seis meses. Segundo o ministro, após esse prazo, os afetados “terão que se reinventar”, pois o governo desencoraja a “mendicância” e a dependência prolongada. Essa postura revela um descompasso preocupante entre a legislação vigente e a realidade vivida por milhares de famílias em Cabo Delgado, muitas das quais enfrentam condições de extrema vulnerabilidade.

Bembe (2019) ajuda a compreender essa contradição: quando o Estado restringe sua obrigação social, exacerba-se o abandono das populações, o que contribui para o aumento da insegurança e o fortalecimento dos vácuos de poder explorados por grupos armados. Além disso, a limitação do apoio estatal a seis meses ignora a complexidade dos processos de reintegração e recuperação pós-conflito, que demandam ações de médio e longo prazo. Guirringane (2024) ressalta que a assistência humanitária deve ser parte integrante do restabelecimento dos direitos humanos e da dignidade das vítimas, sendo insuficiente qualquer estratégia que imponha prazos exíguos.

Três dimensões centrais da crise emergem claramente: o défice de controlo territorial real — com vastas áreas sob domínio de grupos armados; a dependência de forças estrangeiras — que enfraquece a soberania nacional; e a economia de guerra e captura de recursos — que perpetua o conflito (Guirringane, 2024; Cistac, 2013).

5.⁠ ⁠Terrorismo em Cabo Delgado: Lições Comparativas e Estratégias para Moçambique

5.1. Contextualização e Padrões Internacionais

O terrorismo em Cabo Delgado, norte de Moçambique, não é um fenómeno isolado nem exclusivamente local. Trata-se de um quadro complexo que combina fatores internos — como pobreza, desigualdade, corrupção e ausência de serviços públicos — com dinâmicas regionais e globais, incluindo redes de radicalização e tráfico ilícito. Esta análise visa compreender o modus operandi atualmente adotado pelo governo moçambicano no combate ao terrorismo, comparando-o com experiências de outros países que obtiveram resultados insatisfatórios, bem como com exemplos positivos que superaram crises semelhantes, oferecendo lições e propostas aplicáveis à realidade moçambicana.

5.2. Padrões e falhas no combate ao terrorismo: países que vão de mal a pior

Moçambique parece repetir erros já verificados em outros contextos africanos e asiáticos. Em Nigéria, a luta contra o Boko Haram ilustra o fracasso de uma abordagem centrada quase exclusivamente na força militar, com limitada atenção às causas socioeconómicas. Apesar de operações militares intensas, o grupo insurgente expandiu-se para países vizinhos, como Chade, Níger e Camarões.

Na Somália, décadas de ofensivas militares contra o Al-Shabaab, sem estratégias robustas de reconstrução institucional e desenvolvimento local, resultaram num ciclo constante de violência e instabilidade (United Nations, 2022).

No Afeganistão, a intervenção prolongada, marcada por dependência excessiva de apoio internacional e corrupção sistémica, colapsou rapidamente após a retirada das tropas estrangeiras, permitindo o retorno do Talibã.

Estes casos evidenciam que a repressão militar, isolada de políticas socioeconómicas e de reconciliação, tende a prolongar o conflito, alimentar ressentimentos e criar espaço para recrutamento de novos combatentes.

5.3. Exemplos de sucesso e superação: países que viraram o jogo

Alguns países conseguiram inverter situações críticas através de estratégias integradas. Colômbia, no processo de pacificação com as FARC, combinou ações militares direcionadas com negociações políticas, programas de reintegração social e reformas agrárias em regiões vulneráveis (International Crisis Group, 2022).

As Filipinas, ao lidar com o grupo insurgente MILF (Moro Islamic Liberation Front), adotaram acordos de paz que incluíram autonomia administrativa, programas de desenvolvimento e inclusão política, reduzindo significativamente os índices de violência nas regiões afetadas.

Ruanda, após o genocídio de 1994, apostou numa forte reconstrução institucional, desenvolvimento económico acelerado e políticas rígidas contra a corrupção, criando um ambiente em que grupos armados perderam espaço para operar (United Nations Development Programme, 2021).

Estes exemplos demonstram que o sucesso depende de uma abordagem holística que integre segurança, desenvolvimento e reconciliação.

5.4. Lições aplicáveis a Moçambique

Moçambique poderá beneficiar da análise comparativa ao adotar um plano que:

1.⁠ ⁠Integre segurança e desenvolvimento — priorizando reconstrução de infraestruturas, emprego e acesso a serviços básicos em Cabo Delgado;

2.⁠ ⁠Combata a corrupção — assegurando transparência na gestão de fundos destinados à resposta ao terrorismo;

3.⁠ ⁠Fortaleça a governação local — descentralizando decisões e fortalecendo autoridades provinciais e distritais;

4.⁠ ⁠Promova diálogo e reconciliação — estabelecendo canais de comunicação com comunidades vulneráveis e, eventualmente, com insurgentes dispostos à rendição;

5.⁠ ⁠Invista na juventude — criando oportunidades educativas e profissionais que impeçam o aliciamento por grupos armados.

 

5.5. Perspetiva crítica sobre a estratégia atual

O atual modelo moçambicano, fortemente militarizado e pouco transparente, arrisca reproduzir o fracasso da Nigéria e da Somália. A falta de inclusão comunitária e de mecanismos claros de responsabilização mina a confiança da população e favorece a narrativa dos insurgentes.

Sem mudanças estruturais, o país corre o risco de transformar Cabo Delgado num conflito prolongado, com elevados custos humanos, económicos e políticos.

6.⁠ ⁠Conclusão

A crise em Cabo Delgado transcende o conflito armado, revelando falhas profundas na governação, soberania e justiça social em Moçambique. A presença simbólica do Estado, a dependência de forças externas, a limitação da assistência humanitária e a captura de recursos naturais alimentam um ciclo de violência e insegurança que afeta diretamente a população. Para restaurar a autoridade do Estado e garantir a paz duradoura, é imprescindível uma abordagem integrada, multidimensional e participativa, que combine segurança, desenvolvimento e justiça, respeitando os direitos humanos e valorizando as comunidades locais.

A incorporação de lições internacionais reforça a urgência de mudar o paradigma vigente, adotando estratégias que integrem a participação comunitária, o combate à corrupção, a descentralização da governação e o investimento social, visando uma paz sustentável e um Estado forte e legítimo.

Glossário

Autoridade simbólica: Presença formal do Estado que, na prática, não exerce controlo efetivo sobre o território ou a população, funcionando como mero símbolo de poder.

Captura de recursos: Processo pelo qual atores internos ou externos controlam ilegalmente recursos naturais ou económicos para benefício próprio, muitas vezes alimentando conflitos.

Deficiência de controlo territorial: Incapacidade do Estado em garantir a administração e segurança efetiva em todo o seu território, permitindo que grupos armados operem livremente.

Economia de guerra: Dinâmica econômica relacionada ao financiamento e manutenção de conflitos armados, incluindo tráfico ilegal de armas, recursos e extorsão.

Insurgência: Movimento armado que desafia a autoridade do Estado, geralmente por motivos políticos, sociais ou religiosos.

Participação comunitária: Processo pelo qual as comunidades locais são envolvidas ativamente na definição, implementação e monitorização de políticas e programas que as afetam.

Soberania operacional: Capacidade do Estado de exercer controle exclusivo e independente sobre suas forças armadas e segurança no território nacional.

Boko Haram: Grupo extremista islâmico originário da Nigéria.

FARC: Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, grupo guerrilheiro desmobilizado após acordo de paz.

Reintegração social: Processo de inclusão de ex-combatentes na vida civil.

Epílogo

A situação em Cabo Delgado evidencia um desafio que vai muito além do confronto armado. Trata-se da luta pela reafirmação do Estado enquanto garantidor de direitos, segurança e dignidade para os seus cidadãos. A presença simbólica, a fragmentação do território e a dependência de intervenções externas refletem não apenas uma crise de segurança, mas também uma crise ontológica e existencial de Moçambique no seu todo.

O caminho para a reconquista da autoridade passa por aprender com o passado e o presente, reconhecendo que a força militar isolada não é suficiente. É necessário coragem política, justiça social e inclusão genuína das comunidades afetadas, para que a paz em Cabo Delgado não seja uma mera ausência de conflito, mas sim um processo sustentável de reconstrução e esperança.

Referências

1.⁠ ⁠AFRICAN UNION REPORT. Community-Based Approaches to Counterterrorism in Malawi. Addis Ababa: AU Publications, 2023.

2.⁠ ⁠BEMBE, A. Democracia e Instituições em Moçambique. Maputo: Editora Académica, 2019.

3.⁠ ⁠FEIJÓ, J. Vácuos de Poder e Insurgência em Moçambique. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 2024.

4.⁠ ⁠FANON, F. Os Condenados da Terra. Paris: François Maspero, 1961.

5.⁠ ⁠FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

6.⁠ ⁠GUIRRINGANE, Q. Direitos Humanos e Justiça em Cabo Delgado. Revista Moçambicana de Estudos Sociais, v.12, n.1, p.45-62, 2024.

7.⁠ ⁠HUMAN RIGHTS WATCH. Sahel: Crisis in Niger. New York: HRW Reports, 2023.

8.⁠ ⁠IMPISSA, M. Declaração sobre Assistência a Deslocados Internos. Maputo: Ministério da Administração Estatal, 2025.

9.⁠ ⁠INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Iraq: Navigating a New Phase. Brussels: ICG, 2020.

10.⁠ ⁠INTERNATIONAL CRISIS GROUP. Colombia’s Peace Process at a Crossroads. Brussels: ICG, 2022.

11.⁠ ⁠MOSCA, J. Economia de Conflito e Recursos Naturais em Moçambique. Jornal de Economia e Desenvolvimento, v.9, n.2, p.102-119, 2024.

12.⁠ ⁠NUVUNGA, A. Governação e Segurança: Desafios em Cabo Delgado. Maputo: Instituto de Estudos Sociais, 2023.

13.⁠ ⁠UNITED NATIONS. Somalia Humanitarian Overview. New York: UN Publications, 2022.

14.⁠ ⁠UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Rwanda’s Post-Genocide Recovery. New York: UNDP, 2021.

15.⁠ ⁠VALOI, R. Estratégias para Estabilização em Cabo Delgado. Maputo: Instituto de Política e Desenvolvimento, 2024.

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