Internacional

Jimbo: o Juiz Inventor

 

O juiz Mateus Jimbo Jacinto, da 1.ª secção da Sala do Trabalho do Tribunal da Comarca de Luanda, no processo n.º 97/25-A, referente a um procedimento cautelar especificado de suspensão das deliberações de assembleia geral de trabalhadores contra o Sindicato dos Jornalistas de Angola, decidiu ordenar a suspensão da declaração de greve dos jornalistas do sector público.

A decisão do juiz está, do ponto de vista jurídico-legal, errada e representa uma violação afrontosa da interpretação restritiva das limitações que a Constituição exige à adjudicação quando estão em causa direitos fundamentais.

A decisão torna ilegal uma greve com base numa expressão que não está escrita em nenhuma lei ou norma. Isto é, do invisível, criou o visível. Realizou uma interpretação extensiva, lendo o que não está escrito. Em casos de direitos fundamentais, a Constituição proíbe esta interpretação (artigo 57.º da Constituição).

A crítica que se segue é estritamente jurídica, não se pretendendo entrar na discussão política do tema, reafirmando-se que, desse ponto de vista, é necessário um esforço suplementar de negociação e de busca de conciliação e diálogo nacional, quando linhas graves de fractura vão aparecendo.

Há dois pontos essenciais que merecem forte censura da decisão do juiz Jimbo Jacinto.

Em primeiro lugar, o objecto da providência era “a garantia da execução dos serviços mínimos durante a greve (…), subsidiariamente, a suspensão da mesma, na medida, em que se revela ilícita [por incumprimento dos pressupostos do n.º 1, do artigo 43.º do Código do Processo do Trabalho (CPT)]”.

Ora, o que verificamos ao longo das 11 páginas de fundamentação da sentença é que o juiz apenas se debruça sobre a primeira parte do objecto: a questão dos serviços mínimos. Toda a fundamentação é sobre a questão dos serviços mínimos.

Contudo, quando decide, realiza um salto quântico, e torna ilegal a greve na sua totalidade. E faz isso com base numa única frase, citando o artigo 7.º da Lei da Greve, que declara serem ilícitas as greves que não obedeçam aos princípios e regras estabelecidos nessa lei, nomeadamente, ao disposto nos artigos 8.°, 9.°, 10.°, 12.°, 19.° e 20.°. Nesse sentido, fecha o círculo: somente por considerar que a greve não cumpre o requisito dos serviços mínimos, conclui que é totalmente ilegal.

O problema é que a garantia de serviços mínimos não constitui uma neutralização do direito à greve, mas sim uma limitação legítima que visa harmonizar direitos fundamentais em conflito. Quer isto dizer que nunca se trataria de proibir a greve, mas de exigir que os sindicatos, ao convocá-la, adoptassem medidas para garantir a prestação mínima de serviços essenciais. O incumprimento desta obrigação pode ter consequências jurídicas, como a suspensão da greve até ao cumprimento dos serviços mínimos ou a responsabilização das entidades promotoras, mas não implica, por si só, a ilegalidade da greve.

No salto que o juiz dá entre ausência de serviços mínimos e proibição total da greve há um voluntarismo judicial sem suporte constitucional, nem apoio na letra da lei.

Contudo, este não é o erro essencial do juiz. O erro grave do juiz está na interpretação extensiva que faz da norma dos serviços mínimos (artigo 20.º da Lei da Greve). O artigo 20.º da Lei, que cito propositadamente, não indica que as greves nas empresas de comunicação social tenham de respeitar serviços mínimos. Este artigo obriga a serviços mínimos as empresas de correios e telecomunicações, controlo do espaço aéreo, serviços de saúde e farmácia, captação e distribuição de águas, produção, transporte e distribuição de energia eléctrica e distribuição de combustíveis, operações de carga e distribuição de produtos alimentares de primeira necessidade para o abastecimento à população e perecíveis, transportes colectivos, saneamento e recolha de lixo e serviços funerários.

Portanto, de forma literal, não há nenhuma referência à comunicação social.

À partida, não há qualquer obrigação legal de serviços mínimos no sector da comunicação social. Foi uma interpretação do juiz – constitucionalmente errada, como se verá abaixo.

O próprio juiz reconhece, na sua decisão (p. 7), que “da análise do n.º 2 e respectivas alíneas do artigo 20º [da Lei da Greve] efectivamente não consta expressamente descrita (…) como serviços essenciais a palavra comunicação social”.

No entanto, apesar disso, o juiz decide ler a norma como se a expressão lá estivesse, aduzindo para isso algumas razões. Uma delas é que a expressão Telecomunicações está na lei, e o actual Ministério denomina-se Ministério das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação. Daí deduz o magistrado uma conexão e continua apontando para uma interpretação sistemática e realizando um arrazoado sobre a importância da comunicação social.

Temos sorte de o Ministério também não ter a expressão rebuçados na sua denominação, porque, se assim fosse, o raciocínio do juiz levaria a que as fábricas de rebuçados também fossem obrigadas ter serviços mínimos…

Sobre a importância da comunicação social, ninguém a contesta, mas lembremo-nos de que em 1990, data da Lei da Greve, já existia comunicação social, a qual tinha uma função ainda mais importante do que hoje, uma vez que era quase o único meio informativo – hoje há muito mais informação e cada vez mais meios de transmissão. Se na altura o legislador não considerou ser necessário incluir a comunicação social na obrigatoriedade de serviços mínimos, muito menos o consideraria agora.

Todavia, o fundamento para se afirmar claramente que o juiz está errado é o que deriva da leitura e aplicação da Constituição.

A greve é um direito fundamental garantido pelo artigo 51.º da Constituição. Este facto implica que as limitações que se façam ao direito à greve devem obedecer ao artigo 57.º sobre restrições de direitos, liberdades e garantias.

E esta norma é cristalina, determinando que a lei só pode limitar os direitos, liberdades e garantias quando isso estiver claramente previsto na Constituição. Mesmo nesses casos, essas limitações devem ser apenas as estritamente necessárias.

No âmbito do direito constitucional angolano, a interpretação das normas que impõem restrições aos direitos fundamentais deve obedecer ao princípio da favorabilidade, ou seja, deve sempre privilegiar a protecção e a máxima eficácia desses direitos. Isso significa que, quando existe dúvida sobre o alcance ou sentido de uma norma que limita um direito fundamental, o juiz deve optar pela leitura que menos afecte o exercício desse direito. Esta abordagem decorre directamente do artigo 57.º da Constituição da República de Angola, como já se mencionou.

Neste contexto, a interpretação extensiva das limitações, como fez o juiz, ao introduzir no artigo 20.º a expressão “comunicação social”, é expressamente proibida. Não se admite que se alargue o sentido de uma norma restritiva para além do que está claramente previsto, sob pena de se comprometer o núcleo essencial do direito em causa.

A interpretação restritiva das restrições não é apenas uma técnica hermenêutica prudente – é uma exigência constitucional, que garante que os direitos fundamentais não sejam esvaziados por leituras abusivas ou expansivas das excepções que os limitam.

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