A recente proposta de Lei da Segurança Nacional foi aprovada na generalidade na Assembleia Nacional, sem que ninguém tivesse votado contra. Entretanto, levantou-se uma tempestade, havendo quem afirmasse que a lei instaurava uma ditadura, que transformava Angola na Coreia do Norte. Aqui propomos a sua interpretação o mais objectiva possível, para compreender aquilo que a lei de facto põe ou não põe em perigo.
Acontecem coisas bizarras na política angolana. A mais recente diz respeito à proposta de Lei da Segurança Nacional. Esta legislação já foi aprovada na generalidade na Assembleia Nacional, com 112 votos a favor, zero contra e 85 abstenções. Portanto, ninguém, nem nenhum partido, votaram contra. No entanto, depois da votação, levantou-se uma tempestade, havendo quem afirmasse que esta lei instaurava uma ditadura, que transformava Angola na Coreia do Norte, e por aí adiante.
A verdade é que esta discussão deveria ter ocorrido antes da aprovação na generalidade, no contexto dos debates na Assembleia Nacional. Se é lícito que agora se discuta o tema, não se entende por que razão a proposta não foi suficientemente escrutinada anteriormente à votação.
É preciso ler atentamente a letra da lei, de forma distanciada e o mais objectiva possível, para compreender aquilo que ela de facto põe ou não põe em perigo. É isso que nos propomos fazer aqui.
Comecemos por aquilo que não pode constar na lei. Trata-se do artigo 40.º, que determina que todos os funcionários, agentes administrativos das empresas públicas e privadas e outros têm o dever especial de comunicar aos órgãos do sistema de segurança nacional os factos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas, e que constituam riscos e ameaças à segurança nacional. Acrescenta o mesmo artigo que a violação desse dever é susceptível de responsabilidade disciplinar ou criminal, nos termos da lei.
Esta norma começa por estar mal redigida, pois nem se percebe quem abrange. Todos os funcionários de empresas públicas e privadas? E o patrão de uma empresa privada, não tem esse dever de denúncia? E um empresário em nome individual, também não tem? A isto acresce que não se percebe o significado da expressão “outros” para identificar quem tem esse dever. Outros funcionários? Outras pessoas? Quais?
Por aqui se vê que a norma seria impraticável. Igualmente, não se conhece a lei que imputa responsabilidade criminal a quem violar esse dever. Onde está essa lei?
Portanto, temos aqui uma trapalhice jurídica, com uma norma redigida de forma vaga, inoperante, e absolutamente inconstitucional. Se o objectivo da norma era copiar uma recente prescrição da lei chinesa de segurança, que torna cada cidadão num potencial espião (Lei de Inteligência Nacional da República Popular da China, que foi promulgada em 2017), exigindo que todas as organizações e cidadãos cooperem e apoiem as agências de inteligência no seu trabalho e concedendo-lhes imunidade de responsabilidade legal pelas suas acções, então a lei é obviamente inconstitucional, porque viola os direitos de liberdade consagrados no artigo 36.º da Constituição da República Angolana (CRA), designadamente o direito a usufruir plenamente de integridade física e psíquica, bem como a liberdade de consciência do artigo 41.º, entre outros.
Em resumo, este artigo 40.º da proposta de Lei da Segurança Nacional parece querer instituir um dever de denúncia geral de ameaças à segurança nacional, as quais não são bem especificadas e apenas vagamente enunciadas. Consequentemente, este artigo 40.º deve ser expurgado da lei. A “bufaria” generalizada não constrói um Estado de direito democrático.
Na mesma linha, embora já não criando deveres legais, mas meramente cívicos – logo, sem força legal obrigatória –, encontra-se o artigo 39.º, que prescreve aos cidadãos e pessoas colectivas o dever patriótico e cívico de colaborar na persecução dos objectivos de segurança nacional e de não obstruir o normal funcionamento dos sectores, instituições, órgãos e serviços do referido sistema.
Aqui temos um mero enunciado moral, e não qualquer ameaça de procedimento jurídico. Igualmente, esta norma não tem sentido, até porque não se trata de uma verdadeira norma jurídica.
Muito discutido tem sido o artigo 36.º, sobretudo o seu número 4, que permitiria que as forças e os serviços do sistema de segurança pudessem propor a interrupção temporária de vias de comunicação terrestre, aérea, marítima e fluvial, de sistemas de telecomunicações, do acesso e circulação de pessoas, bem como da evacuação ou abandono temporário de locais ou meios de transporte.
Esta norma não é injuntiva, isto é, não cria um direito novo e imediato. Trata-se apenas de uma enumeração de possibilidades que têm de estar especificamente previstas ou limitadas por outras leis. Isto quer dizer que, por exemplo, os serviços de segurança podem propor cortes de internet, desde que tal esteja previsto noutra legislação ou dentro dos limites de outra legislação. Aqui não se trata de um direito novo instaurado ilimitadamente por esta norma, nem neste caso, nem em nenhuma das medidas enunciadas no artigo 36.º. Talvez a redacção pudesse ser melhorada.
Se repararmos, este problema (interrupção da internet) surge noutros países ocidentais e com respostas dúbias. Por exemplo, nos Estados Unidos parece admitir-se que o governo interrompa a internet por razões de segurança nacional, embora não se saiba exactamente quem o pode fazer. O presidente dos Estados Unidos tem autoridade executiva para declarar uma emergência nacional e tomar as medidas necessárias para proteger a nação de ameaças externas ou internas. No entanto, o poder do presidente está sujeito a limitações constitucionais e legais, bem como à supervisão judicial e do Congresso. O Departamento de Segurança Interna (DHS), que é a principal agência federal responsável pela coordenação e implementação da estratégia de segurança nacional, incluindo segurança cibernética e protecção de infra-estruturas essenciais, tem autoridade para emitir directivas operacionais vinculativas às agências federais e solicitar a cooperação de entidades do sector privado para enfrentar ameaças e vulnerabilidades cibernéticas. O Departamento de Justiça (DOJ) tem autoridade para solicitar ou obter ordens judiciais para obrigar ou autorizar a intercepção ou interrupção de comunicações para fins de aplicação da lei ou de segurança nacional. A Comissão Federal de Comunicações (FCC), que é a agência federal independente que regula o sector das telecomunicações, incluindo a internet, tem autoridade para emitir regras e ordens que afectem a disponibilidade e a qualidade dos serviços de comunicações, bem como para fazer cumprir os seus regulamentos e impor sanções por violações. Trata-se de um enquadramento legal confuso.
No essencial, o resto da proposta de lei angolana não é constituído por normas preceptivas, ou seja, normas que obriguem a determinada conduta, mas meramente princípios e normas de enquadramento que criam orientações globais e são essencialmente organizadoras. Poucos elementos desta lei têm aplicação imediata e com efeitos nos cidadãos.
Na verdade, no que toca às questões relacionadas com os serviços de segurança, as leis dificilmente podem ser perfeitas. A interrogação que sempre se coloca é a de decidir se deve haver uma lei sobre este tema, mesmo que seja imperfeita, ou se, pelo contrário, não deve haver lei nenhuma, deixando-se que os serviços actuem da melhor maneira no mundo da mera factualidade. (https://www.makaangola.org)