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Um Legado Envenenado: Como a Contaminação e os Esforços Falhos de Limpeza Definem a Vida em Comunidades Ricas em Petróleo na Nigéria

[FOTO: Vista do petróleo flutuando na margem do cais de Bodo. Pulitzer / AnuOluwapo Adelakun]

 

Por AnuOluwapo Adelakun
 Bolsista do Pulitzer Centre
Estado de Rivers, Nigéria

Link para o documentário: https://www.youtube.com/watch?v=nsT5w_N-7b8

 

A água do poço artesiano da casa do camarada Noble Nwolu cheira a petróleo cru. Quando ele abre a torneira, o cheiro exala imediatamente e uma listra oleosa brilha sob o sol. “Minha casa fica bem aqui nas terras de Nsisioken, e você não pode usar a água desta casa para nada além de dar descarga e lavar roupas”, diz ele, frustrado.

Essa é a realidade quase três décadas depois que a Shell encerrou a extração ativa de petróleo no Delta do Níger, na Nigéria. O ar ainda carrega um leve odor metálico. Crianças nascem em meio à contaminação; os mais velhos são enterrados por ela. O que começou como uma crise ambiental se calcificou como a realidade de toda uma geração.

[FOTO: Camarada Noble Nwolu abrindo a torneira em seu terreno.Pulitzer / AnuOluwapo Adelakun]
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O Peso das Promessas Quebradas
O petróleo jorrou pela primeira vez do solo de Ogoniland na década de 1950. Durante mais de trinta anos, a extração ocorreu praticamente sem regulamentação; vazamentos de oleodutos, sabotagens e derramamentos tornaram-se rotina. Mas os moradores afirmam que a verdadeira traição começou depois que a Shell se retirou em 1993, deixando para trás um legado tóxico de infraestrutura abandonada e comunidades devastadas.

Os números contam essa história com clareza brutal: em 2011, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) encontrou lençóis freáticos contendo benzeno (um agente cancerígeno conhecido) em níveis até 900 vezes superiores aos padrões da Organização Mundial da Saúde. A ONU pediu ação imediata e delineou um plano de remediação com duração estimada entre 25 e 30 anos.

Em 2016, surgiu uma centelha de esperança quando a Nigéria lançou o Projeto de Remediação da Poluição por Hidrocarbonetos (HYPREP) para implementar essas recomendações. Quase uma década depois, essa esperança se transformou em amarga decepção.

Como é a Remediação na Prática

Seguindo um contato local com acesso a diversos pontos de limpeza, nossa equipe de documentaristas chegou a uma das áreas oficiais de remediação em Ogale. O agrupamento Okuluebu, que inclui os lotes 47 a 55, foi entregue a empresas como Lapideo Multiservices Ltd, Slot Eng Nig Ltd, Environ Consult and Remedial Service Ltd, Klartek Nig Ltd, Erotina Nig Ltd e Montego Upstream Services Ltd. Este local deveria simbolizar progresso. Em vez disso, oferece uma verdadeira aula sobre negligência ambiental.

As recomendações das Nações Unidas são claras: buracos escavados devem ser cuidadosamente preenchidos com solo tratado; os montes de solo contaminado devem ser isolados com coberturas impermeáveis; e áreas temporariamente afetadas precisam ser cobertas para evitar erosão.

O que encontramos desafia todos esses padrões. Duas enormes ravinas cortam o solo onde deveria haver nivelamento cuidadoso. O solo contaminado está espalhado em montes desordenados. Lonas rasgadas balançam ao vento como bandeiras abandonadas sobre um terreno desolado.

[FOTO: Ravinas visíveis no local do agrupamento Okuluebu, oficialmente certificado como concluído e descomissionado pela HYPREP. Pulitzer/AnuOluwapo Adelakun]

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Em outro local, identificado apenas como “Fase 2 SMR014”, as violações são ainda mais flagrantes. Solo contaminado foi despejado diretamente sobre a terra nua, exposto ao escoamento da água da chuva. Um cientista local, falando diante das câmeras, balança a cabeça em incredulidade: “O óleo vai ser levado para as plantações e espalhar ainda mais a poluição. Isso vai contra todas as práticas padrão.”

As bio-células (poços especializados projetados para isolar e tratar o solo poluído) estão quase vazias, enquanto a terra contaminada se espalha pela paisagem, penetrando cada vez mais fundo no lençol freático e nas terras agrícolas ao redor.

A Ciência do Sofrimento

Nossa avaliação ambiental independente realizada em 2024 nas comunidades de Gokana e Eleme revela a extensão alarmante da contaminação contínua:

  • Em K-Dere: Os níveis de cádmio nas amostras de água atingiram 0,032 mg/L — mais de seis vezes acima do limite seguro estabelecido pela OMS. O chumbo chegou a 0,14 mg/L, superando em muito o limite permitido de 0,01 mg/L. Já os Hidrocarbonetos Totais de Petróleo (TPH) nos sedimentos alcançaram 132.000 mg/kg — 260 vezes superiores aos padrões regulatórios.
  • Em Ogale: Benzeno e tolueno contaminam os suprimentos de água doméstica. Ambos os compostos estão associados ao aumento do risco de câncer com a exposição prolongada.
  • Ao longo do Rio Gbe: Os níveis de Sólidos Totais Dissolvidos e Condutividade Elétrica tornam a água imprópria para consumo, pesca ou irrigação.

O líder juvenil da comunidade de Ogale nos convidou a testar o poço artesiano de sua casa. Os resultados revelaram cádmio, benzeno e outras toxinas derivadas do petróleo em níveis muito acima dos limites regulatórios. Ele compra água em saquinhos para sua família, mas nem isso é garantia de segurança.

Onde a Morte Vira Negócio

A câmera percorre o mercado de caixões de Bori, onde caixões de madeira alinham-se nas ruas empoeiradas como num mercado macabro. Os negócios seguem firmes. Firmes demais.

“A maioria das pessoas que morrem está na faixa dos 30 e 40 anos”, explica o proprietário da funerária Motherhood Mortuary, em Bera, com um tom de voz pragmático, moldado por anos lidando com mortes prematuras. “Antes, eu preservava corpos de pessoas que viviam até os 100 anos. Agora isso é raro.”

Os relatórios de autópsia de sua funerária contam uma história repetida: insuficiência renal, tuberculose, doenças respiratórias — o catálogo de enfermidades relacionadas à poluição. As crianças são as mais ameaçadas; seus órgãos em desenvolvimento são mais vulneráveis à insuficiência renal induzida por cádmio e aos danos neurológicos permanentes causados pelo chumbo.

[FOTO : Homem pegando um caixão com motocicleta no mercado de madeira e caixões de Bori.
 Pulitzer/AnuOluwapo Adelakun]

HYPREP: Boas Intenções, Execução Fracassada

O Projeto de Remediação da Poluição por Hidrocarbonetos (HYPREP) chegou com grande alarde em 2016, apoiado por milhões em fundos públicos e altas expectativas internacionais. Hoje, avaliações de campo mostram que, em locais oficialmente marcados como “remediados”, a contaminação muitas vezes persiste; ou até piorou.

Em Okuluebu, os níveis de cádmio e chumbo no solo supostamente limpo ultrapassam os encontrados em áreas que nunca passaram por remediação. A ironia é amarga: locais apontados como casos de sucesso exibem contaminação maior do que aqueles jamais tocados pelos esforços de limpeza.

A comunicação pública do HYPREP se resume, na maior parte, a um boletim mensal sem detalhamento orçamentário. Diversos pedidos de entrevista feitos por jornalistas e organizações da sociedade civil foram negados ou ignorados. Essa falta de transparência alimenta suspeitas de má gestão ou desvio de recursos, enquanto as comunidades afetadas permanecem (literal e figurativamente) no escuro sobre seu futuro.

 

[FOTO: Placa da HYPREP na estrada do mercado de Ogale. Pulitzer/AnuOluwapo Adelakun]
 

Ecos de Ken Saro-Wiwa
O áudio de arquivo chia ao ganhar vida: “Acuso a Shell e a Chevron de praticarem racismo contra o povo Ogoni. Elas fazem em Ogoni o que não fazem em nenhuma outra parte do mundo.” A voz é de Ken Saro-Wiwa, o ativista ambiental cuja campanha contra a poluição causada pela Shell levou à sua execução em 1995, sob o regime militar da Nigéria. Quase 30 anos depois, suas palavras soam como uma profecia.

Embora a Shell tenha resolvido uma ação civil nos Países Baixos e concordado em pagar £55 milhões à comunidade de Bodo em 2021, pouca coisa mudou no território. A empresa já se desfez de sua subsidiária nigeriana, encerrando oficialmente suas operações terrestres no Delta do Níger. Em março de 2025, o governo nigeriano aprovou a transferência da participação de 30% da Shell para a Renaissance Africa Energy Company Limited, um consórcio que as comunidades afetadas veem como uma manobra da Shell para escapar de responsabilidades legais, mantendo ativos lucrativos.

A Shell alega que a responsabilidade pela limpeza cabe ao governo nigeriano. Enquanto isso, as falhas da HYPREP apenas agravam o sofrimento.

O Custo Humano
 O que torna a tragédia de Ogoniland ainda mais comovente não é apenas a poluição; é o fato de ela ter se tornado normal. Famílias organizam suas vidas em torno da água contaminada. Crianças crescem conhecendo o gosto de petróleo em sua água potável. Agricultores observam suas plantações morrerem em solos envenenados e aceitam isso como algo inevitável.

Essa normalização representa talvez a maior injustiça ambiental: quando comunidades inteiras se adaptam a condições que deveriam ser impensáveis, o mundo simplesmente deixa de prestar atenção. A crise se torna invisível justamente porque está em toda parte.

Um Caminho a Seguir
 A justiça ambiental em Ogoniland exige mais do que documentação exige ação concreta:

Supervisão Independente: Um conselho externo de monitoramento, incluindo cientistas internacionais, representantes da sociedade civil e líderes comunitários Ogoni, deve supervisionar todos os esforços de remediação.

Prestação de Contas Transparente: A HYPREP precisa publicar relatórios detalhados de gastos e se submeter a auditorias independentes. A era da diplomacia via boletim informativo precisa acabar.

Cuidados Médicos Imediatos: Comunidades em alto risco precisam de intervenção médica urgente e sistemas contínuos de monitoramento de saúde. Tratar os efeitos da poluição na saúde não pode esperar pela restauração ambiental.

Restauração de Infraestrutura: Poços seguros, solo limpo e terras agrícolas recuperadas não são luxos; são direitos humanos fundamentais.

 

O Preço Que Todos Pagamos
 O documentário A Poisoned Legacy levanta perguntas desconfortáveis: o que é justiça quando uma geração inteira é envenenada antes mesmo que a limpeza ambiental comece? Quem assume a responsabilidade quando o petróleo enriquece todos, menos as pessoas que vivem onde ele é extraído?

O abismo entre a ambição internacional e a implementação local em Ogoniland revela como o racismo ambiental se manifesta na prática. A atenção global produz relatórios e conferências; as comunidades locais recebem água contaminada e mortes prematuras.

Até que Ogoniland receba a limpeza completa que lhe foi prometida, o Delta do Níger continuará sendo um lembrete gritante do que acontece quando a destruição ambiental se normaliza, transformando-se em violência geracional que o mundo aprende a ignorar.

O petróleo pode ter parado de fluir, mas o veneno permanece. E a cada dia que passa, o custo da inação se torna mais pesado para famílias que nunca escolheram pagar esse preço.

 

[FOTO: Vista aérea de um ponto no rio Bodo onde uma película de óleo ainda flutua, apesar dos esforços de limpeza. Pulitzer/AnuOluwapo Adelakun]
AnuOluwapo Adelakun é uma jornalista e cineasta nigeriana cujo documentário “A Poisoned Legacy” investiga a crise ambiental contínua em Ogoniland. Esta reportagem conta com o apoio de uma bolsa do Pulitzer Centre.

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