Por Tiago J.B. Paqueliua
_”Uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa.”_
— Montesquieu, Do Espírito das Leis, 1748.
1. Introdução
Segundo reporta o Notícias.mmo (02 de Julho de 2025)[¹], o Comité Executivo de Coordenação de Políticas de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, em articulação com o Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, iniciou uma operação de fiscalização a instituições religiosas — igrejas, mesquitas e congéneres — e Organizações Não Governamentais (ONG), visando garantir a sua conformidade legal em matéria de registo, contabilidade organizada e transparência.
À luz do compromisso internacional de Moçambique com os regimes de compliance financeiro, tal medida reveste-se de aparente normalidade e até de razoabilidade preventiva. Porém, o seu alcance, impacto e enquadramento constitucional merecem reflexão crítica, pois, como adverte Bobbio, «todo o poder tende a expandir-se para além dos limites estabelecidos, se não encontrar resistências eficazes»[²].
2. A tensão entre liberdade associativa e segurança colectiva
No ordenamento jurídico moçambicano, o direito de liberdade religiosa e associativa encontra consagração expressa na Constituição da República[³]. A sua protecção visa garantir que comunidades de fé, bem como associações civis, desempenhem livremente o seu papel como actores complementares do Estado, nomeadamente na promoção da solidariedade, defesa de direitos humanos e coesão social.
Por conseguinte, a suspeição generalizada contra igrejas ou ONG, se não calibrada, pode converter-se num factor de intimidação (chilling effect), inibindo iniciativas legítimas de cidadania activa. Cass Sunstein adverte que, em democracias frágeis, «o excesso de controlo burocrático pode silenciar vozes necessárias ao pluralismo democrático»[⁴].
No entanto, o risco real de infiltração de capitais ilícitos, via entidades de fachada, não é negligenciável. Casos de branqueamento e financiamento ao extremismo — embora minoritários — são historicamente documentados em zonas de conflito e pobreza[⁵]. A resposta estatal, todavia, deve obedecer ao princípio da proporcionalidade, conforme defende Jorge Miranda: «O controlo do associativismo é matéria sensível, pois, mal exercido, degenera em arbítrio e sufoca o pluralismo.»[⁶]
3. A regulação como escudo, não como grilhão
A exigência de contabilidade organizada e registo formal não é, em si, uma violação de direitos, mas antes uma condição de boa governança. Porém, como observa o constitucionalista português Vital Moreira, «a qualidade da lei é medida não apenas pelo seu conteúdo, mas pelo rigor e transparência da sua aplicação»[⁷].
Se a fiscalização se tornar selectiva, politizada ou permeável à corrupção administrativa, corre-se o risco de criar um mercado de chantagens, onde o auditor se converte num actor de extorsão. Este fenómeno, documentado em várias democracias emergentes, resulta em dupla perda: debilita o Estado de Direito e mina a confiança dos cidadãos nas instituições públicas.
A legitimidade de tais operações reside, pois, na técnica e na isenção: auditorias devem ser conduzidas por entidades independentes, com critérios objectivos, relatórios públicos e vias de recurso claras para as organizações visadas.
4. O desafio da confiança mútua
O futuro da relação entre Estado, confissões religiosas e sociedade civil organizada depende, essencialmente, de um pacto tácito de confiança. Sem confiança, multiplica-se o controlo; multiplicando-se o controlo, degrada-se a confiança.
Como nota Alexis de Tocqueville, «o despotismo pode fazer sem fé, a liberdade não.»[⁸] Assim, o combate à criminalidade financeira deve alicerçar-se em sistemas de controlo robustos, mas também em processos de capacitação, educação e responsabilização das próprias comunidades religiosas e ONG.
Regulação não deve ser sinónimo de intimidação; deve ser sinónimo de integridade partilhada.
5. Conclusão
Moçambique enfrenta uma encruzilhada: ou transforma a presente «caldeira de fiscalizações» num acto de engenharia institucional, que robustecerá o sector religioso e associativo mediante a promoção da legalidade e da confiança, ou arrisca-se a perpetuar a lógica de um Estado vigilante que, paradoxalmente, alimenta a suspeição que pretende combater.
Como recorda Norberto Bobbio, «a democracia é um regime de regras, mas também de confiança recíproca»[²]. Cabe ao Estado, como primeiro devedor do interesse público, garantir que o cetro da legalidade não apague a candeia da liberdade.
Notas
[¹] Notícias.mmo, «Fiscalizações a instituições religiosas e ONG avançam em Moçambique», 02 de Julho de 2025.
[²] Norberto Bobbio, Teoria Geral da Política, Rio de Janeiro: Campus, 1999.
[³] Constituição da República de Moçambique, Artigo 12.º (Laicidade do Estado) e Artigos 52.º-54.º (Liberdade de Associação).
[⁴] Cass Sunstein, Designing Democracy: What Constitutions Do, Oxford: Oxford University Press, 2001.
[⁵] Ver United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), Global Report on Money Laundering, 2022.
[⁶] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Coimbra: Almedina, 2012.
[⁷] Vital Moreira, «Estado de Direito e Qualidade da Legislação», Revista de Legislação e Jurisprudência, 2003.
[⁸] Alexis de Tocqueville, Democracia na América, São Paulo: Martins Fontes, 2005 [1835].
Referências bibliográficas
1. Bobbio, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
2. Miranda, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2012.
3. Moreira, Vital. «Estado de Direito e Qualidade da Legislação». Revista de Legislação e Jurisprudência, 2003.
3. Sunstein, Cass. Designing Democracy: What Constitutions Do. Oxford: Oxford University Press, 2001.
4. Tocqueville, Alexis de. Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
5. UNODC. Global Report on Money Laundering. New York: United Nations Office on Drugs and Crime, 2022.
