Por Jerry Maquenzi
Entre a glória herdada e a miséria vivida, a juventude moçambicana carrega o peso de uma independência que já não lhes pertence. Enquanto as elites transformam o passado em capital privado, os netos da liberdade crescem na pobreza, nas zonas mais ricas em recursos, e mais pobres em oportunidades.
- Do sonho da libertação à realidade da desigualdade
Este artigo parte dos estudos sobre as incidências pós-eleitorais realizados pelos investigadores do Observatório do Meio Rural (OMR). Mas o objectivo vai além das estatísticas: mostrar que o ideal nacionalista que outrora moveu a FRELIMO está deteriorado, e que é urgente mudar este paradigma.
A luta de libertação nacional foi movida por jovens determinados, dispostos a arriscar tudo pela independência. Eram estudantes, camponeses e operários unidos por um projecto colectivo de emancipação. Com o passar dos anos, muitos desses combatentes ascenderam ao poder e ocuparam cargos estratégicos no Estado. Mais tarde, beneficiaram-se do processo de privatização das empresas estatais, transformando-se em grandes empresários (Pitcher, 2003). O poder político acumulou-se com o poder económico, consolidando-se numa elite restrita.
- A herança dos “jovens de ontem”
Hoje, os jovens moçambicanos continuam a ser convocados para a luta, agora contra a pobreza e contra ameaças à segurança nacional, como a insurgência armada no Norte de Moçambique. Porém, o que observam é que os “jovens de ontem”, hoje adultos privilegiados, desfrutam de um padrão de vida muito acima da média.
Esses antigos combatentes e seus sucessores continuam a ocupar grandes extensões de terra, expulsando populações para vender a multinacionais. Tornam-se sócios em megaprojectos sem aportar capital próprio, apenas graças a ligações políticas.
- Negócios, política e captura de recursos
O Centro de Integridade Pública (CIP) e o investigador Thomas Selemane têm documentado a participação de elites políticas em negócios de mineração e logística. Não se trata de casos isolados: registos no Boletim da República mostram que, nos últimos anos, aumentou significativamente o número de empresas criadas por figuras politicamente expostas, muitas com participação directa em projectos mineiros e no sector de segurança privada ao longo da costa moçambicana. A lógica é clara: enquanto os jovens comuns são incentivados a “defender a pátria”, alguns dos seus superiores usam a estabilidade e os recursos do Estado como plataforma para parcerias com grandes capitais nacionais e estrangeiros.
Esta realidade é igualmente analisada pelo investigador Edson Cortez (Director do CIP) na sua tese de doutoramento, intitulado “Velhos Amigos, Novos Adversários: As Disputas, Alianças e Reconfigurações Empresariais na Elite Política Moçambicana” demonstra como redes de poder político e empresarial se entrelaçam na gestão de recursos naturais em Moçambique. A sua investigação revela que a captura dos sectores estratégicos não só perpetua desigualdades, como também mina a confiança pública nas instituições e alimenta tensões sociais, especialmente entre os jovens, que vêem as riquezas nacionais concentradas nas mãos de poucos.
- Onde há exploração, há revolta
As investigações de João Feijó e Rita Chiúre mostram que as zonas com mineração, corredores logísticos e grandes centros urbanos foram algumas das mais afectadas pelos conflitos pós-eleitorais. Mais importante ainda: identificam que os participantes activos nestes protestos são jovens com baixa escolaridade, desempregados ou subempregados e, quase sempre, abaixo da linha de pobreza.
Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), dos Inquéritos ao Orçamento Familiar (IOF 2022) reforçam esta correlação: muitos dos distritos com elevada incidência de conflitos pós-eleitorais têm juventude vivendo com menos de 2,15 USD por dia. É a combinação perfeita para o descontentamento, exclusão económica, frustração social e ausência de perspectivas.
- De filhos da independência a netos da frustração
A narrativa oficial celebra a independência como a grande conquista nacional. Mas para muitos jovens de hoje, o que resta é um país onde o mérito vale menos do que as conexões políticas, e onde a riqueza nacional é apropriada por poucos. O projecto colectivo de desenvolvimento foi substituído pela lógica da acumulação privada, perpetuando desigualdades estruturais.
Assim, os “filhos da independência” deram origem aos “netos da frustração”: uma geração sem acesso equitativo às oportunidades, mas com memória histórica suficiente para perceber que o país poderia ter seguido outro caminho.
- Conclusão: o risco de um novo ciclo de revolta
Se nada mudar, a história pode repetir-se: a revolta que um dia foi dirigida contra o colonialismo português poderá, amanhã, voltar-se contra o próprio Estado que dela nasceu.
O futuro de Moçambique depende da capacidade de transformar o ideal da independência em políticas que, finalmente, incluam os netos dessa luta, antes que a frustração se torne irreversível
- Mudar o rumo: três medidas urgentes
Para evitar que o ciclo da frustração se converta em instabilidade crónica, são necessárias mudanças profundas:
- Reforma da gestão de recursos naturais
- Criar mecanismos de transparência obrigatória para todas as participações accionistas de figuras politicamente expostas.
- Implementar fundos de desenvolvimento locais financiados por receitas mineiras, directamente geridos pelas comunidades.
- Políticas de juventude com impacto estrutural
- Ir além de kits de auto-emprego e promover formação técnica orientada para sectores estratégicos (energia, construção, tecnologia, agricultura moderna).
- Garantir quotas para jovens em contractos públicos e concessões.
- Reforço da coesão social e da participação do cidadão
- Garantir canais de participação política e comunitária para jovens, evitando que o descontentamento seja canalizado apenas pela via do protesto violento.
- Investir em programas que liguem juventude, universidades e sectores produtivos.
Referências
Cortez, Edson. (2018). Velhos Amigos, Novos Adversários As Disputas, Alianças e Reconfigurações Empresariais na Elite Política Moçambicana. Tese de Doutoramento em Antropologia da Economia e do Trabalho. Universidade de Lisboa. Instituto de Ciências Sociais. Lisboa.
Feijó, J. & Chiúre, R. (2025a). Afinal “Foi Só Maputo”? A geografia do protesto Pós-Eleitoral. In Destaque Rural nº 324. Observatório do Meio Rural. Maputo.
____________________ (2025b). Um Vasto Repertório de Protestos: A Etnografia das Manifestações Pós- Eleitorais. In Destaque Rural nº 329. Observatório do Meio Rural. Maputo.
____________________ (2025c). Quem Saiu às Ruas? Uma Análise dos Actores em Protesto Durante as Manifestações Pós-Eleitorais. In Destaque Rural nº 331. Observatório do Meio Rural. Maputo.
INE. (Base de dados). “Inquéritos ao Orçamento Familiar – IOF 2022”. Instituto Nacional de Estatística.
PITCHER, M., Anne. (2003). “Sobreviver à transição: o legado das antigas empresas coloniais em Moçambique”. Análise Social. Vol. xxxviii (168), pp. 793-820.
Selemane, Thomas. (2017). A Economia Política do Corredor de Nacala: Consolidação do Padrão de Economia Extrovertida em Moçambique. In Observador Rural nº 56. Observatório do Meio Rural. Maputo.
____________________. (2019). A Economia Política do Corredor da Beira: Consolidação de um Enclave ao Serviço do Hinterland. In Observador Rural nº 70. Observatório do Meio Rural. Maputo.