Por Tiago J.B. Paqueliua
“A justiça, quando cega só para os pobres, não é justiça – é encenação cínica de poder disfarçado de virtude.”
Em mais uma encenação institucional digna de tragicomédia pós-colonial, a Procuradoria-Geral da República (PGR) da Cidade de Maputo — qual zeladora moral da urbe — decidiu, num gesto de suposta higienização social, encerrar as humildes barracas situadas num raio de 500 metros das escolas. A razão? O incremento alarmante do consumo de álcool e estupefacientes por estudantes. A narrativa é simples e eficaz: as barracas são o demónio em forma de zinco ondulado, e os seus vendedores, coitados, cúmplices involuntários da decadência juvenil.
A Digníssima Procuradora-Chefe, Natércia Maritanha Dias, preferiu talvez não consultar Aristóteles antes de agir — que diria que justiça é tratar os iguais como iguais e os desiguais na medida da sua desigualdade. Ou, quem sabe, terá lido Platão ao contrário, adoptando a tese da repressão sobre a do esclarecimento, eliminando o sintoma sem tratar da causa.
Num teatro jurídico da seletividade, o que espanta — ou, melhor, não espanta, pois estamos em Moçambique — é a seletividade cirúrgica do zelo legalista. Um breve passeio académico, ou mesmo turístico, revela que o Restaurante entre a Embaixada do Reino Unido e o SERNIC, a escassos passos do ISCAM e de uma Escola Primária ali defronte, permanece incólume. As barracas do Museu, o aristocrático Hotel Cardoso (com seu bar panorâmico de bebidas espirituosas), e o restaurante no jardim contíguo, todos respiram, fumam e bebem dentro do mesmo perímetro de 100 metros da Escola Secundária Josina Machel.
E, claro, o Instituto Comercial de Maputo também convive — sem alarde jurídico — com o Hotel Vila das Mangueiras, o Hotel das Arábias, e pelo menos um restaurante cujo nome talvez escape à memória mas certamente não ao olhar vigilante da magistratura. O que têm estes estabelecimentos em comum? Não são feitos de zinco. Não vendem por copo. E, mais crucial, não alimentam pobres — alimentam os ricos.
As barracas, para além de serem estruturas precárias, são o último reduto de subsistência de centenas de famílias criminosas só por que são pobres reincidentes, abandonadas pelo mesmo Estado que agora lhes dá a machadada final. Não foram estas estruturas permitidas — mesmo que tacitamente — pelo próprio Estado? Não são alvo de cobrança regular de taxas municipais, num claro reconhecimento da sua existência de facto?
É curioso que o mesmo Estado que não indemniza os lesados — como exige o princípio da boa-fé administrativa — é aquele que, em tempos de pandemia, aproveitou o confinamento para, à semelhança do então edil Eneias Comiche, proceder à destruição maciça de barracas, sem qualquer plano de reinserção socioeconómica. A lógica é simples: pau que nasce torto, o Estado endireita com retroescavadoras, sem recurso, sem audição, sem compaixão.
Na sua acostumada ética sem moral e legalidade sem justiça, a PGR de Maputo poderá até sustentar a legalidade do acto. Afinal, há leis e regulamentos que proíbem a venda de álcool junto a escolas. Mas será que a justiça se esgota na legalidade? E por que razão essa lei se aplica com mais vigor a vendedores de barracas do que a gerentes de restaurantes e hotéis?
A resposta, se quisermos ser honestos, não requer um doutoramento em Ciências Jurídicas, mas apenas um espelho social: é mais fácil punir o pobre do que afrontar o poder económico. É o velho instinto colonial reencarnado em toga pós-independente — uma espécie de “justiça de classe”, que desce com fúria aos bairros suburbanos, mas que caminha em bicos de pés, pelas avenidas diplomáticas.
Enquanto os jovens fumam e bebem — e é certo que o fazem — os verdadeiros traficantes de vícios e impunidades continuam a jantar nos restaurantes que servem tanto vinho quanto cumplicidade com o sistema institucional hipócrita. É nesse paradoxo que vive Maputo: cidade onde se combate a delinquência pobre com firmeza, mas se ignora a criminalidade respeitável com reverência.
A mensagem é clara: em Moçambique, vender uma cerveja numa barraca é um atentado à ordem pública; mas servir whisky num hotel de quatro estrelas é hospitalidade turística. O mesmo álcool, mas duas justiças. O mesmo raio de 500 metros, mas duas geografias morais.
Conclusão
Se a justiça fosse, de facto, cega, não veria a diferença entre zinco e betão armado. Mas como em Moçambique ela apenas fecha os olhos ao que convém, resta ao povo a melancólica contemplação da comédia nacional, onde se ri para não chorar — ou para não se tornar cúmplice do silêncio.
Neste cenário, o Estado não passa de um autor que escreve tragédias com a tinta do sofrimento alheio. E o povo, espectador atónito, continua à espera de uma justiça que o trate como cidadão e não como estorvo. Até lá, resta-nos filosofar… e resistir.
“Num Estado ético, o poder protegeria os vulneráveis. Num Estado tragicómico como o nosso, o poder é o primeiro a empurrá-los para o abismo, por terem cometido o pecado de serem empobrecidos”.