Por Tiago J.B. Paqueliua
A atitude contraditória do político moçambicano Venâncio Mondlane – que num momento se diz vencedor das eleições e no seguinte considera ocupar um lugar reservado ao segundo candidato mais votado – ilustra uma das maiores tragédias da oposição em Moçambique: a abdicação voluntária da coerência em favor de um protagonismo institucional de fachada.
Como em tragédias anteriores, o gesto é, ao mesmo tempo, sintoma da fragilidade moral da oposição e do êxito das estratégias cooptadoras do partido hegemónico, a FRELIMO (Cabrita, 2000; Chabal, 2002).
Desde a luta armada de libertação, comportamentos similares se verificam. O reverendo Uria T. Simango, figura histórica da FRELIMO e mais tarde seu dissidente, denunciou corajosamente práticas de tribalismo, regionalismo e assassinatos internos liderados por figuras como Eduardo Chivambo Mondlane, Samora Moisés Machel, Joaquim Alberto Chissano, Armando Emílio Guebuza, todos da etnia gazense, e mais tarde, com apoio de Marcelino dos Santos e Janete Rael Mondlane.
Após romper com a FRELIMO e formar seu próprio partido, Simango acabou capturado, sem julgamento, e assassinado em M’telela, província do Niassa, juntamente com outros opositores (Morier-Genoud, 2009).
A história se repete, com novos protagonistas e estratégias remodeladas.
Afonso Dhlakama, ex-líder da RENAMO, ensaiou repetidas recusas em reconhecer os resultados eleitorais, ameaçou boicotes parlamentares, mas acabava sempre retornando ao círculo da institucionalidade, legitimando com sua presença o regime que dizia combater (Pitcher, 2002).
Hoje, Venâncio Mondlane segue o mesmo guião. Após rejeitar publicamente os resultados eleitorais de 2024, chamando Daniel Chapo de “usurpador”, Mondlane considerou aceitar integrar o Conselho de Estado com base na Constituição – precisamente o artigo que confere esse direito ao segundo candidato mais votado (Constituição da República, Art. 164).
Uma contradição evidente: ou ele é o vencedor, ou aceita que foi segundo.
Tal incoerência revela mais que indecisão: evidencia a crise ética e estratégica da oposição moçambicana, reduzida a reboque de sondagens fabricadas por algoritmos sociais e propaganda digital (Machava, 2020).
A suposta consulta digital feita na página “XITSUNGO DIZ SIM”, com 10.605 comentários, dos quais 87% dizem “sim” à sua entrada no Conselho de Estado, ilustra o quão longe se vai na teatralização da vontade popular – manipulada em plataformas como Meta Business Suite, Sprout Social e inteligência artificial sem critérios auditáveis (Zizek, 2008).
Essa adesão incondicional ao simulacro revela a capitulação da oposição à lógica simbólica do regime. Tornam-se “cataventos” ao sabor do vento institucional, sem firmeza política, nem enraizamento ético.
A retórica de resistência é posta ao serviço de agendas pessoais e sobrevivência política. O político deixa de ser o canal de uma comunidade insurgente e torna-se peça substituível de um sistema de representação cínico e autoconsumível (Mbembe, 2001).
Na dimensão teopolítica, tal postura também é reprovável. A verdade, mesmo quando esmagada pelo consenso institucional, não deixa de ser exigível.
Como recorda Sócrates na Apologia: “A vida sem exame não vale a pena ser vivida” (Platão, séc. IV a.C./1999).
Ao negligenciar o autoexame moral e político, os líderes da oposição moçambicana transformam-se em versões rotativas dos seus opressores. Não há transcendência no oportunismo, nem libertação na duplicidade.
Moçambique precisa de políticos que, como Uria Simango, estejam dispostos a morrer com dignidade, não a viver como instrumentos descartáveis da mesma engrenagem que pretendem criticar.
Precisamos duma oposição com memória, firmeza e fé no povo – e não em convites calculados da elite dominante. Só assim, este país será verdadeiramente “nosso”.
Bibliografia
1. Cabrita, João M. (2000). Mozambique: The Tortuous Road to Democracy. Palgrave Macmillan.
2. Simango, Uria T. (1974). O meu testemunho: Carta de Uria Simango aos moçambicanos e ao mundo. Arquivos da Igreja Presbiteriana de Moçambique.
3. Hall, Margaret. (1990). A Fragile Settlement: The Transition to Democracy in Mozambique. Journal of Modern African Studies, 28(4), 575–578.
4. Mbembe, Achille. (2001). On the Postcolony. University of California Press.