Por Tiago J.B. Paqueliua
O drama de Cabo Delgado expõe novamente as fissuras da política moçambicana no tratamento de conflitos armados. Daniel Chapo, Presidente da República, defende que a paz e a segurança não se constroem apenas com armas, mas também com diálogo e reconciliação. Lutero Simango, líder do MDM, reforça a mesma narrativa, defendendo que a solução para o terrorismo passa pela inclusão dos jovens combatentes em programas de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR), evitando que regressem às fileiras insurgentes.
À primeira vista, tal convergência política poderia ser motivo de esperança: governo e oposição alinhados numa mesma visão. Porém, ambos caem no mesmo ciclo vicioso de “Diálogo-Amnistia-DDR”, fórmula já aplicada em processos anteriores — como no caso da RENAMO e da sua Junta Militar — que, em vez de resolver, cristalizou a ideia de que os crimes de guerra compensam política e economicamente. Massacres, destruição e deslocamentos forçados acabam convertidos em capital de negociação política, enquanto as vítimas permanecem invisíveis, sem justiça retributiva nem responsabilização.
A História recente confirma o padrão. Em 1992, com os Acordos de Roma, e mais recentemente em 2019, com a integração da Junta Militar da RENAMO, os pactos privilegiaram elites políticas e militares, mas não criaram condições reais de reparação para milhões de vítimas da guerra civil. O resultado foi a institucionalização de uma cultura de impunidade que alimenta novas insurgências. Cabo Delgado é, nesse sentido, o capítulo mais recente de um livro escrito com sangue e esquecimento.
A ausência de Moçambique no Tribunal Penal Internacional (TPI) agrava o problema. Enquanto países africanos como Ruanda e Serra Leoa recorreram a mecanismos de justiça internacional e tribunais híbridos para responsabilizar os autores de crimes de guerra e genocídio, Maputo insiste no silêncio, na amnistia automática e na reconciliação como fetiche político. O resultado é uma paz frágil, que mais parece pausa estratégica para novas violências.
As vítimas de Palma, Mocímboa da Praia, Macomia ou Muidumbe raramente são ouvidas. Aquelas que perderam familiares, aldeias inteiras e meios de subsistência veem os carrascos regressarem às suas comunidades com promessas de “reintegração”, mas sem justiça nem verdade. Essa exclusão não só fere a dignidade das vítimas, como perpetua o entendimento de que a violência armada é um caminho viável para alcançar poder, recursos e atenção governamental.
O discurso de Chapo e o de Simango poderiam ter mais substância se fossem acompanhados de compromisso inequívoco com a justiça. Sem tribunais, responsabilização, mecanismos de memória e reparação, todo diálogo é vazio, toda reconciliação é superficial, toda amnistia é insulto.
Experiências internacionais de justiça transicional
Países como Ruanda apostaram em tribunais comunitários (gacaca) e tribunais internacionais para punir autores de genocídio, reconhecendo a centralidade das vítimas no processo de reconstrução nacional (Mamdani, 2001). Serra Leoa combinou tribunais híbridos e comissões da verdade, promovendo responsabilização de líderes de milícias e reparações às comunidades afetadas (Clark, 2010). Na África do Sul, a Comissão da Verdade e Reconciliação criou precedentes sobre a importância de escuta pública e confissões documentadas, ainda que com limitações na punição de crimes graves (Tutu, 1999). Estes modelos demonstram que a paz duradoura depende de uma arquitetura que combine verdade, justiça, reparação e reformas estruturais, e não apenas amnistia e reintegração de combatentes.
Moçambique, até hoje, insiste no caminho fácil: amnistia sem memória, perdão sem verdade, reintegração sem responsabilização. Uma escolha que favorece os atores políticos e armados, mas condena as populações à repetição de ciclos de violência.
Epílogo
O Estado e a oposição disputam a autoria da mesma fórmula falida, vendendo ao povo a miragem da paz enquanto cultivam os escombros da impunidade. As vítimas, como sempre, são chamadas a perdoar sem sequer terem tido o direito de acusar. Talvez seja por isso que, em Moçambique, a História se repete com tanto zelo: porque aqui, o crime de guerra, longe de ser punido, é currículo para mesa de negociações.
Referências
1. DW – Deutsche Welle. “Cabo Delgado: MDM defende diálogo com rebeldes”. 18 Agosto 2025. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/cabo-delgado-mdm-defende-di%C3%A1logo-com-rebeldes/a-68421296
2. 360 Mozambique. “MDM defends economic and social solutions to avoid recruitments”. 2025. Disponível em: https://360mozambique.com/economy/mdm-defends-economic-and-social-solutions-to-avoid-recruitments
3. Mamdani, Mahmood. When Victims Become Killers: Colonialism, Nativism, and the Genocide in Rwanda. Princeton University Press, 2001.
4. Clark, Janine. The Sierra Leone Special Court and its Legacy: Politics, Justice, and Human Rights. Cambridge University Press, 2010.
5. Tutu, Desmond. No Future Without Forgiveness. Doubleday, 1999.
6. Human Rights Watch. Cabo Delgado: Civilians Bear the Brunt of Terrorism and Inaction. 2024.
7. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Justice and Security Sector Reform in Post-Conflict Settings. 2023.