Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
Este artigo examina criticamente o projecto da Nova Centralidade Urbana de Vilankulo, promovido pelo Fundo de Fomento à Habitação (FFH), no quadro das políticas públicas de habitação em Moçambique. Partindo de uma abordagem multidisciplinar, que conjuga urbanismo crítico, ciência política e direito administrativo, argumenta-se que o referido projecto se insere numa tendência recorrente de planeamento simbólico e exclusão territorial. Ao invés de concretizar justiça urbana, a habitação pública tem operado como mecanismo de legitimidade política e redistribuição desigual do espaço urbano. O estudo recorre à comparação com outros projectos (Marracuene, Pipoco I e II, Chiango, Massinga), e mobiliza fontes secundárias, relatórios institucionais e literatura científica, para demonstrar que o discurso de inclusão juvenil e modernização urbana mascara a reprodução de lógicas elitistas de apropriação territorial.
Palavras-chave:
Habitação pública; Planeamento urbano; Captura institucional; Juventude; Vilankulo; Urbanismo simbólico; Justiça espacial.
1. Introdução
A habitação pública ocupa lugar central nas narrativas de governação em Moçambique desde o período pós-independência. A partir dos anos 2000, com o advento de novas centralidades e projectos habitacionais, intensificou-se a retórica do Estado como promotor de inclusão social, em particular junto à juventude urbana. No entanto, a materialização dessas iniciativas tem sido limitada, marcada por baixa execução, opacidade administrativa e apropriação desigual do solo urbano.
A Nova Centralidade de Vilankulo, anunciada em 2025, constitui mais um marco deste padrão. O presente artigo analisa este projecto como parte de uma política pública de urbanização cujo eixo é a gestão simbólica da esperança e a reciclagem de estratégias de governação centradas na retórica em detrimento da redistribuição efectiva de recursos.
2. Referencial Teórico e Metodologia
A análise apoia-se em três pilares interdisciplinares:
Urbanismo crítico, com destaque para o conceito de “fantasias urbanas africanas” (Cain, 2017), que descreve projectos urbanísticos grandiosos mas com fraca execução e forte capital político.
Ciência política, nomeadamente a teoria da captura do Estado (Hanlon, 2021; Sumich, 2018), que identifica formas pelas quais elites políticas instrumentalizam instituições para benefício privado.
Direito administrativo, com ênfase em Cistac (2010), que defende que a afectação opaca de terras urbanas sem critérios públicos viola os princípios da legalidade, participação e previsibilidade na administração pública.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório, baseado em análise documental (relatórios governamentais, legislação, discursos oficiais), revisão bibliográfica especializada e comparação entre cinco casos seleccionados por relevância territorial e similitude discursiva: Marracuene, Pipoco I e II (Boane), Chiango, Massinga e Vilankulo. A selecção baseou-se na recorrência com que estes projectos foram apresentados como soluções estruturantes para a juventude e na sua posterior inoperacionalidade.
3. A Produção Simbólica da Habitação Pública em Moçambique
Desde a viragem liberal dos anos 1990, o Governo moçambicano recorre sistematicamente à habitação pública como símbolo de progresso e inclusão. Exemplos notáveis incluem:
A Cidade Satélite de Marracuene (2002), anunciada para beneficiar 5.000 famílias, mas com uma taxa de ocupação inferior a 10% (Instituto de Habitação de Moçambique, 2022);
O Projecto 10 Mil Casas (2006), que não alcançou 5% da meta, e foi alvo de críticas por má gestão e ausência de transparência;
Os bairros Pipoco I e II, lançados com grande publicidade, mas com fraca infraestrutura e abandono do espaço urbanizado;
A Zona Urbana Jovem de Massinga (2023), cuja implantação revelou-se tecnicamente inviável.
Em todos os casos, constata-se um padrão comum: forte mobilização simbólica da juventude, centralização decisória, critérios obscuros de selecção de beneficiários, e ausência de fiscalização social.
4. Vilankulo: Continuidade ou Inovação?
O projecto de Vilankulo insere-se nesta lógica. Prevê-se a distribuição de 1.200 talhões, com acesso a serviços básicos, mediante um investimento de 40 milhões de meticais. No entanto, persistem indícios de ambiguidade e opacidade:
O valor dos talhões “ainda não foi decidido”, segundo o Ministro das Obras Públicas (O País, 2025), o que contradiz os princípios da clareza e previsibilidade administrativa (Cistac, 2010);
Há relatos de pré-venda a 200 mil meticais por lote, sem publicação oficial dos critérios de acesso;
Investigações jornalísticas (Canal de Moçambique, 2021–2024) sugerem que beneficiários tendem a ser actores próximos do poder político.
O caso de Vilankulo repete, portanto, padrões históricos em que a habitação pública é menos instrumento de justiça do que recurso de controlo territorial e de reprodução de redes clientelares.
5. Juventude como Recurso Simbólico
A juventude, apresentada como principal destinatária dos projectos de habitação, é simultaneamente actor e vítima de políticas públicas marcadas pela exclusão. Em estudos sobre juventude e urbanização no sul global, tem-se destacado a sua função simbólica na legitimação de regimes (Gengenbach, 2014; Honwana, 2012).
Em Moçambique, conforme Sumich (2018), a juventude urbana enfrenta desemprego crónico, falta de habitação e ausência de canais efectivos de participação. A sua mobilização discursiva em torno de programas de habitação raramente se traduz em inclusão efectiva, mas antes em legitimação de projectos tecnicamente frágeis.
6. Conclusão: Planeamento Sem Justiça
O caso da Nova Centralidade de Vilankulo exemplifica a persistência de um modelo de planeamento urbano que privilegia a representação simbólica sobre a justiça distributiva. Sem reformas institucionais profundas — que incluam auditorias públicas, critérios de afectação transparentes, e participação cidadã real —, os projectos habitacionais continuarão a operar como instrumentos de reprodução de desigualdades e não como promotores de coesão social.
Tal como em experiências anteriores, o risco é o de se criar não uma nova centralidade, mas mais um espaço urbano politicamente direccionado, socialmente excludente e tecnicamente disfuncional.
Referências Bibliográficas
1. Cain, A. (2017). African Urban Fantasies: Past Lessons and Emerging Realities. Urban Forum, 28(3), 313–331. https://doi.org/10.1007/s12132-017-9317-3
2. Cistac, G. (2010). Direito Administrativo de Moçambique. Maputo: Escolar Editora.
3. Gengenbach, H. (2014). Livelihood, Land and Youth Aspirations: The Meaning of the Land in Mozambique. In Land and Agrarian Reform in Mozambique (CODESRIA).
4. Hanlon, J. (2021). Cabo Delgado and the Evolution of Mozambique’s Elite Predatory System. LSE IDEAS.
5. Instituto de Habitação de Moçambique. (2022). Relatório de Avaliação do Programa Casa para Todos. Maputo: MOPHRH.
6. Jenkins, P. (2001). Emerging Urban Residential Land Markets in Post-Socialist Mozambique. IJURR, 25(1), 137–155.
7. Sumich, J. (2018). The Middle Class in Mozambique: The State and the Politics of Transformation in Southern Africa. Cambridge: CUP. https://doi.org/10.1017/9781108236361
8. UN-Habitat. (2020). The State of African Cities: Towards Sustainable Urban Transitions. Nairobi: UN-Habitat.
9. O País. (2025, Julho). Entrevista ao Ministro Fernando Rafael. Maputo: Grupo SOICO.
10. Canal de Moçambique. (2021–2024). Diversas reportagens sobre fundos habitacionais. https://canal.co.mz
11. @Verdade. (2021–2024). Dossiês sobre projectos habitacionais paralisados. https://www.verdade.co.mz
12. Honwana, A. (2012). The Time of Youth: Work, Social Change, and Politics in Africa. Kumarian Press.