Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo:
O presente ensaio analisa criticamente o discurso proferido por Daniel Chapo durante o simpósio dos 50 anos da independência de Moçambique e dos 63 anos da FRELIMO. Argumenta-se que o discurso se enquadra no polo da falsidade política ao reiterar a identificação simbólica entre o partido e a nação, ignorando o desgaste ético, institucional e histórico da FRELIMO.
Utilizando uma abordagem ensaístico-crítica, a análise evidencia os mecanismos retóricos de legitimação utilizados para apagar as fraturas sociais, silenciar a dissidência e perpetuar a hegemonia do partido no imaginário nacional. Conclui-se que a celebração encenada opera como estratégia de blindagem discursiva frente à crise de legitimidade que assola o regime moçambicano.
Palavras-chave:
FRELIMO; memória política; independência; discurso político; legitimação; crise de representação; hegemonia.
1. Introdução
O discurso de Daniel Chapo, atual presidente da FRELIMO e da República de Moçambique, proferido durante o simpósio comemorativo dos 50 anos da independência nacional e dos 63 anos da fundação do partido FRELIMO, apresenta-se como objeto de análise crítica ,pela carga simbólica e política que carrega.
A afirmação de que tais marcos representam “um momento de celebração não apenas para o partido, mas para toda a nação moçambicana”, deve ser lida, não como afirmação neutra, mas como operação ideológica.
Trata-se de um gesto discursivo típico de regimes em fase de desgaste: a invocação do passado como escudo contra as interrogações do presente e como ferramenta de silenciamento das vozes críticas.
2. A FRELIMO como Partido-Estado: uma construção ideológica
A retórica apresentada por Chapo opera por meio de uma clássica substituição simbólica: a sinédoque política, na qual o partido se apresenta como parte que representa o todo. Esse fenômeno, analisado por estudiosos como Gramsci e Laclau, é típico de regimes que pretendem exercer a hegemonia não apenas sobre o aparato do Estado, mas sobre a própria imaginação nacional.
Dizer que “os 63 anos da FRELIMO são um marco para a nação” é, portanto, um enunciado de poder — e não uma constatação histórica. Ignora que, após a conquista da independência, a FRELIMO instalou um sistema monopartidário repressivo, perseguiu opositores internos e externos, e construiu um aparelho de Estado centralizador que suprimia qualquer forma de pluralismo político.
A independência foi, sem dúvida, uma vitória popular. Já a sua apropriação pela FRELIMO, um sequestro progressivo da soberania popular.
3. O apagamento das fraturas: silêncio como estratégia de domínio
Ao celebrar os feitos históricos, o discurso de Chapo realiza uma amputação seletiva da memória coletiva. Não há menção aos massacres pós-coloniais, à guerra civil fratricida, à transformação do Estado em instrumento de enriquecimento ilícito de elites partidárias, nem à sistemática violação dos direitos civis ao longo das últimas décadas. O silêncio em torno desses temas é eloquente: serve como mecanismo de gestão da memória, conforme apontado por estudiosos dos regimes autoritários.
Este tipo de narrativa constrói uma versão domesticada da história: um passado sem conflito, um presente sem crise e um futuro sem alternativas. Em outras palavras, um roteiro ideal para a manutenção do poder.
4. A manipulação do simbólico em tempos de crise de legitimidade
É importante situar o discurso no contexto mais amplo da atual crise de legitimidade que abala o regime moçambicano. Eleições reiteradamente contestadas por fraude, repressão brutal a manifestações pacíficas, aumento da desigualdade, corrupção endêmica e insegurança no norte do país, colocam em xeque qualquer tentativa de retratar o país como exemplo de estabilidade.
Diante disso, a estratégia discursiva do regime é recorrer à linguagem simbólica: a bandeira, o hino, os mártires da luta de libertação. São elementos que, embora carregados de sentido histórico, são agora instrumentalizados para obscurecer o presente.
Quando Chapo fala em “unidade”, não se refere a uma coesão construída pela inclusão democrática, mas a uma uniformidade imposta por meios coercivos — visível no uso da polícia para silenciar críticos, manipular resultados eleitorais e criminalizar a dissidência.
5. Conclusão: O Teatro das Celebrações e o Silêncio dos Vencidos
As palavras de Chapo, embora proferidas com solenidade, pertencem ao repertório dramático de um regime que se encena a si próprio como libertador, enquanto perpetua novas formas de dominação.
A celebração dos 50 anos de independência transforma-se, assim, num ritual necrofílico: celebra-se a memória de um passado heróico enquanto se asfixia o presente com a rotina da mentira institucionalizada.
E, como em toda peça trágica encenada há demasiado tempo, o público já conhece os diálogos de cor. Os atores trocam de nome, mas o script é o mesmo: louvor ao partido, apelo à unidade, ocultação das feridas.
Dizem-nos que a pátria vive. Mas escutando os tiros nas ruas, os gritos abafados nas celas, os sorrisos forçados dos bajuladores — talvez seja mais correto dizer que a pátria está em coma induzido, enquanto os doutores do partido disputam quem assina a certidão de óbito.
Bibliografia Consultada
. Gramsci, A. Cadernos do Cárcere.
. Laclau, E. & Mouffe, C. Hegemony and Socialist Strategy.
. Fanon, F. Os Condenados da Terra.
. Mbembe, A. Necropolítica.
. Cistac, G. Estado de Direito e Constituição em África Lusófona.