Por Tiago J.B. Paqueliua
Resumo
Este ensaio propõe uma leitura crítica da CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa — à luz dos seus quase trinta anos de existência, argumentando que a organização, tal como se constitui e opera, converteu-se num espaço de legitimação das autocracias presidenciais no seio dos Estados lusófonos, particularmente os africanos. Sustenta-se a tese de que a CPLP tem fracassado na promoção da democracia, na salvaguarda dos direitos humanos e na construção de uma comunidade plural, transparente e inclusiva. O texto funda-se num diálogo interdisciplinar entre Direito Internacional, Teoria Política, História Constitucional comparada e Filosofia Clássica e Contemporânea. Por fim, propõem-se caminhos de reforma institucional e de suplantação cívica do status quo.
Palavras-chave
CPLP; autocracia presidencial; direitos humanos; sociedade civil; democracia; reforma institucional; lusofonia crítica.
Glossário
Jus cogens – Norma imperativa do Direito Internacional à qual nenhum Estado pode derrogar, como a proibição de tortura ou escravidão.
Accountability – Princípio da responsabilidade pública, segundo o qual as autoridades devem prestar contas à sociedade e às instituições de controlo democrático.
Autocracia presidencial – Sistema de governo em que o Presidente concentra poderes desproporcionais, sem mecanismos eficazes de controlo institucional.
Cláusula democrática – Dispositivo jurídico que condiciona a pertença ou os benefícios numa organização internacional ao respeito efectivo pelos princípios democráticos.
Diplomacia lusófona – Relações políticas e institucionais entre Estados de língua portuguesa, articuladas no quadro da CPLP.
Sociedade civil organizada – Conjunto de movimentos, associações, ONG’s, académicos e outros actores não estatais que intervêm de forma activa na vida pública.
I. PRÓLOGO
Nas margens do século XXI, quando o mundo ensaiava um coro de esperanças renovadas com a queda dos muros autoritários e o florescer da governança democrática, nasceu — entre pompas lusófonas e acordos diplomáticos — a CPLP, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. No entanto, passadas quase três décadas desde a sua fundação, torna-se inescapável a constatação crítica: esta comunidade falante da mesma língua tem-se tornado, em essência e prática, um matadouro da democracia e um clube galardoado de autocracias presidenciais, sobretudo nos seus eixos africanos.
Não é mera hipérbole retórica. É denúncia ancorada em evidência empírica, lógica jurídica e diálogo com as mais nobres tradições filosóficas e políticas — de Aristóteles a Hannah Arendt, de Cícero a Norberto Bobbio. Este ensaio parte da premissa de que a CPLP, tal como se apresenta e funciona, não só fracassou na sua missão fundacional como se converteu num obstáculo estrutural à democratização dos seus Estados-membros, legitimando, promovendo e condecorando regimes iliberais e autocráticos, particularmente no continente africano.
II. A CPLP COMO LEGITIMADOR DE AUTORITARISMOS
Argumento 1: A CPLP tem sido utilizada como instrumento para legitimar e reforçar regimes autoritários em África.
A eleição de Umaro Sissoco Embaló para a presidência rotativa da CPLP, durante a Cimeira de Julho de 2025, não pode ser lida fora de contexto. Trata-se de um chefe de Estado cujo governo é acusado de repressão sistemática à oposição, manipulação do sistema judicial e uso da força para consolidar poder. A sua escolha para liderar a CPLP não é um acaso. É um sintoma. A comunidade, ao invés de ser espaço de promoção de valores democráticos, oferece palco de consagração e escudo diplomático a regimes que, noutras circunstâncias, estariam sob sanção e isolamento internacional.
Reuniões como a Cimeira de Bissau de 2025, onde seis presidentes com histórico contestado de práticas democráticas se congratularam mutuamente, parecem mais um conclave de autocratas do que uma assembleia de Estados comprometidos com os direitos humanos e o Estado de Direito.
III. O SILÊNCIO DA CPLP COMO CÚMPLICE DAS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Argumento 2: A organização tem falhado em promover a democracia e os direitos humanos nos países membros.
A CPLP não dispõe de um mecanismo vinculativo de verificação e denúncia de violações dos direitos humanos. Não existe um tribunal lusófono, nem sequer uma relatoria ou comissão de direitos humanos com poder de monitoramento. Quando Moçambique reprime manifestações pacíficas ou a Guiné-Bissau sufoca a imprensa livre, o silêncio da CPLP é tão ensurdecedor quanto cúmplice. De facto, no seio da CPLP, a linguagem dos direitos humanos é mera retórica protocolar, sem tradução prática.
Ora, o princípio do jus cogens do Direito Internacional impõe a defesa universal dos direitos humanos como obrigação inderrogável. Ignorá-lo é abdicar do estatuto de organização internacional de boa-fé e alinhar-se, ainda que tacitamente, com os perpetradores.
IV. CPLP: UM CLUBE EXCLUSIVO DE PRESIDENTES
Argumento 3: A CPLP é um clube de chefes de Estado, onde os interesses pessoais e políticos dos líderes são priorizados em detrimento dos interesses dos povos.
A forma como se organizam as cimeiras, as decisões tomadas em ambientes fechados e a ausência de mecanismos de consulta às sociedades civis denunciam uma estrutura obsoleta e monolítica. A CPLP não é espaço de encontro dos povos lusófonos, mas sim dos seus representantes mais poderosos — e frequentemente mais antidemocráticos.
A tradição política clássica, desde Políbio até Rousseau, ensina que qualquer pacto comunitário sem representação real do povo é uma ficção de legitimidade. Neste contexto, a CPLP é uma ficção diplomática disfarçada de integração linguística.
V. A OPACIDADE COMO MODO OPERANDI
Argumento 4: A organização tem falta de transparência e accountability.
Não há relatórios públicos de impacto das resoluções da CPLP. As decisões sobre integração, cooperação ou sanções não são submetidas a qualquer escrutínio democrático. Os parlamentos nacionais pouco ou nada discutem as resoluções saídas das cimeiras. As sociedades civis — activistas, académicos, jornalistas — são sistematicamente excluídas do processo decisório.
A accountability, como valor republicano e critério de boa governação, é inexistente. Num tempo em que o mundo exige transparência, a CPLP opera com o mesmo segredo ritualizado das cortes absolutistas.
VI. CONTRAPONTO COM OUTROS MODELOS
Que soluções têm sido testadas noutras geografias e lograram êxito?
1. O modelo da Commonwealth
Apesar de também reunir antigas colónias sob laços linguísticos, a Commonwealth criou mecanismos de monitoramento dos direitos humanos e já suspendeu Estados-membros por práticas antidemocráticas, como aconteceu com o Zimbabwe e o Paquistão. Tal acção eleva o padrão moral da organização e fortalece a sua autoridade.
2. União Africana (UA)
Mesmo com falhas crassas, a UA dispõe da Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governação, cuja violação pode conduzir a sanções diplomáticas e económicas. A CPLP, em contraste, é incapaz até de emitir notas críticas.
3. Mercosul e Cláusula Democrática
O Protocolo de Ushuaia estabelece que a ruptura democrática pode implicar suspensão do Estado-membro. A ausência de instrumento similar na CPLP traduz-se em permissividade institucional.
VII. RESISTÊNCIA À MUDANÇA E COMO CATAPULTÁ-LA
Por que a CPLP resiste à reforma democrática?
Porque serve aos interesses das elites políticas em manutenção do status quo. Qualquer reforma que implique accountability, pluralismo ou participação cidadã representa ameaça ao controlo autocrático.
Como catapultar a mudança?
1. Pressão das sociedades civis organizadas: Criação de um Fórum Paralelo da CPLP que reúna académicos, jornalistas, activistas e ONG’s, com capacidade de emitir relatórios-sombra sobre a situação política e de direitos humanos nos países membros.
2. Condicionalidade democrática para apoio financeiro e cooperação técnica: Instituições como o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) devem depender de compromissos com a liberdade de imprensa, eleições livres e pluralismo político.
3. Rotatividade cidadã e transparência: As presidências rotativas devem ser acompanhadas de avaliação pública, com critérios de elegibilidade que excluam governos violadores dos direitos humanos.
4. Tribunal Lusófono de Direitos Fundamentais: Uma jurisdição ética e simbólica para emitir pareceres, ainda que não vinculativos, como mecanismo de visibilidade e constrangimento público.
VIII. CONCLUSÃO
A CPLP é hoje uma organização capturada por elites autocráticas, surda aos anseios populares e cega aos princípios fundamentais do Direito Internacional Público. O que nasceu como promessa de comunidade tornou-se arena de galardões mútuos entre presidentes-presidencialistas, numa celebração recorrente do poder pessoal em detrimento da soberania popular.
Como dizia Aristóteles na Política, “a democracia corrompida degenera em demagogia, mas a oligarquia corrompida resvala para a tirania.” A CPLP, no seu actual modelo, não é apenas ineficaz — é cúmplice. E cúmplice silenciosa.
Ou se reforma, ou se dissolve. Entre a regeneração e o descrédito absoluto, só o povo dos países lusófonos pode resgatar o ideal comunitário — não em Lisboa ou em Bissau, mas nas praças, universidades e ruas de Maputo, Luanda, São Tomé e Díli.
IX. EPÍLOGO
O silêncio das instituições fala alto quando os povos calam por desilusão. E a CPLP, esse corpo diplomático aclamado nas cimeiras e ignorado nas crises, tornou-se um espelho partido da promessa lusófona. Resta saber se os seus fragmentos serão varridos pela História ou refundidos no forno da cidadania activa.
Que o verbo nos una, mas que também nos desperte. Pois a língua, sem liberdade, é só um eco dócil do poder.
REFERÊNCIAS
1. DW África. (2025). CPLP é mais um matadouro da democracia e clube amador e premiador da autocracia em África.
2. Liga Guineense dos Direitos Humanos. (2025). Declaração sobre a CPLP como estrutura moribunda.
3. Moniz, L. (2025). CPLP, palco de vaidades autoritárias, Revista Africana de Política Comparada.
4. Arendt, H. (1973). The Origins of Totalitarianism. Harvest Books.
5. Bobbio, N. (1990). Estado, Governo, Sociedade. Paz e Terra.
6. Commonwealth Secretariat. (2022). Commonwealth Charter and Democracy Reports.
7. União Africana. (2023). Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governação.