Economia

OURO SANGRENTO: Quem Lucra com as Mortes na Mineração Artesanal em Manica?

Por Jerry Maquenzi

 

Mais uma vez, a tragédia volta a assolar o subsolo de Manica. Segundo noticiou recentemente a STV e o jornal O País, o desabamento de uma mina de ouro poderá ter ceifado a vida de pelo menos dez garimpeiros. As autoridades locais ainda tentam recuperar os corpos, num cenário que se repete ano após ano, com rostos diferentes, mas o mesmo enredo: pobreza, clandestinidade, lama e morte.

Nos arredores de Barué, Vanduzi ou Nhamatanda, a mineração artesanal tornou-se sinónimo de sobrevivência para milhares de moçambicanos que perderam o emprego, viram as terras familiares serem expropriadas ou simplesmente desistiram de esperar pelo “desenvolvimento” prometido. Esses homens e mulheres descem aos buracos estreitos e instáveis com pás e picaretas, arriscando a vida em busca de migalhas douradas que, depois de passarem por várias mãos, acabam por enriquecer outros, os invisíveis beneficiários de um sistema que transforma a miséria em ouro exportável.

Quando as minas desabam, a mídia fala em “acidente”. Mas será mesmo um acidente quando há ausência deliberada de fiscalização, nenhuma assistência médica a menos de 100 quilómetros, e um Estado que há décadas conhece os riscos, mas não age? As mortes dos garimpeiros são tudo, menos um acaso. Elas fazem parte de uma engrenagem de exclusão e lucro que poucos têm coragem de enfrentar.

  1. A Face Humana do Garimpo

A mineração artesanal em Manica, Tete e Cabo Delgado é, antes de tudo, um fenómeno social. Não se trata de “criminosos” nem de “invasores”, mas de trabalhadores informais à margem de qualquer protecção. Muitos vêm de famílias camponesas sem acesso a insumos agrícolas, outros são jovens desempregados que procuram alguma forma de sustento.

Em regiões como Nairoto (Montepuez) ou Vanduzi, as minas estão a mais de 150 km dos centros urbanos. Estradas de terra batida tornam qualquer viagem uma odisseia. Nessas condições, não há ambulância que chegue a tempo quando ocorre um soterramento, nem hospital que receba corpos mutilados. A distância da mina de Ntola (Nairoto) até ao hospital mais próximo é de cerca de 180 km, uma eternidade para quem tenta salvar um companheiro preso sob a lama.

Mas a distância que mais dói não é geográfica. É a distância moral entre quem arrisca a vida e quem lucra com ela. O ouro de Manica e de Nairoto não desaparece, ele percorre rotas bem conhecidas, até chegar a compradores locais, intermediários nacionais e exportadores que o vendem em mercados internacionais. É aqui que começa o verdadeiro problema: as mortes subterrâneas sustentam uma cadeia de valor opaca, onde o sofrimento de uns se converte em riqueza para outros.

  1. As Sombras que pairam sobre o Ouro

A pergunta que raramente se faz e que incomoda é simples: quem lucra com as mortes dos garimpeiros?

A resposta não cabe em frases curtas, porque o garimpo ilegal é mais do que um problema criminal: é um modelo de acumulação. Nos últimos 15 anos, Manica tornou-se palco de uma economia subterrânea que movimenta milhões de dólares, fora de qualquer controlo fiscal ou laboral (Diário Económico, 16.10.2025).

Há três círculos principais de beneficiários neste sistema.

  1. O círculo local

Aqui encontramos os “chefes de campo” e intermediários que controlam as minas. São figuras respeitadas localmente, muitas vezes com conexões políticas ou familiares com as autoridades administrativas. Cobram taxas informais, regulam quem pode cavar, e determinam a quem se vende o ouro. Em troca, garantem uma relativa “protecção” contra a polícia ou contra grupos rivais.

Esses chefes não são necessariamente criminosos no sentido clássico. São agentes de uma economia paralela que surgiu onde o Estado se ausentou. Mas a sua autoridade alimenta o conflito, pois a luta pelo controlo das minas frequentemente desemboca em violência armada.

  1. O círculo intermediário

Aqui entram compradores locais, transportadores e pequenos empresários que operam entre a legalidade e a informalidade. Compram o ouro em bruto, fundem-no, falsificam documentação e o revendem para exportadores. Muitas vezes são os principais financiadores do garimpo, fornecendo alimentos, combustível e ferramentas.

Alguns desses intermediários possuem relações privilegiadas com funcionários do Estado, o que lhes permite atravessar fronteiras com relativa facilidade. Há relatos persistentes de conluio entre certos agentes da polícia e compradores, que garantem “protecção” mediante pagamento.

  • O círculo global

É o mais invisível, e o mais poderoso. Exportadores formais adquirem ouro “legalizado”, que em muitos casos é apenas ouro artesanal misturado a lotes de origem duvidosa. Empresas internacionais compram sem saber (ou fingem não saber) que aquele metal vem de zonas de risco, onde crianças trabalham e adultos morrem soterrados.

No final da cadeia, o ouro entra nas bolsas internacionais, em joias e circuitos financeiros, limpo de qualquer rastro de sangue. É a perfeição do capitalismo extractivo: transformar a morte em mercadoria.

  1. Estado Ausente e Conivente

A narrativa oficial tende a culpar os garimpeiros pela ilegalidade. No entanto, é impossível compreender o fenómeno sem analisar o papel do Estado, não apenas pela omissão, mas também pela conivência.

O Estado moçambicano, especialmente nos níveis distrital e provincial, tem sido incapaz de garantir fiscalização eficaz. Faltam recursos, técnicos, viaturas e vontade política. Mas, para além da ineficiência, há algo mais profundo: o garimpo ilegal tornou-se funcional ao sistema político. Ele movimenta dinheiro, gera lealdades e alimenta redes clientelistas (Maquenzi e Feijó, 2025).

Nas vésperas de campanhas eleitorais, não é raro observar candidatos visitando zonas de garimpo, prometendo “tolerância” e “apoio”. Em troca, recebem contribuições informais e apoio logístico. A economia do ouro serve assim como moeda política, um tipo de financiamento paralelo que escapa ao escrutínio.

Além disso, alguns projectos de mineração industrial, muitas vezes com capital estrangeiro, são atribuídos sem transparência, em áreas já ocupadas por comunidades garimpeiras. Isso cria conflitos e ressentimentos, enquanto perpetua a ideia de que o Estado age a favor das elites e não dos cidadãos.

  1. Violência como Política Pública

O segundo rosto da omissão é a repressão. Quando a situação foge ao controlo, o Estado envia forças policiais para “restabelecer a ordem” (Diário Económico, 16.10.2025). Infelizmente, o que deveria ser uma acção de segurança transforma-se frequentemente em operações letais.

Em várias ocasiões, garimpeiros foram mortos a tiro por agentes da lei (Valoi, 15.10.2025; Maquenzi, 17.10.2025). As autoridades falam em “legítima defesa ou manutenção da ordem pública”; as comunidades falam em execução. A verdade raramente vem à tona, porque não há investigações independentes nem responsabilização.

Esse padrão não é exclusivo de Manica. Em Namanhumbir, Cabo Delgado, casos de baleamentos e destruição de aldeias foram amplamente denunciados por organizações de direitos humanos e jornalistas. O Estado repete o mesmo erro: trata o garimpo como um problema policial, e não como um problema social e económico.

Mas cada bala disparada, cada mina desabada, cada corpo soterrado alimenta um ressentimento que se acumula. E esse ressentimento tem consequências políticas, pois reforça a percepção de que há um “Estado para ricos” e um “Estado para pobres”.

  1. A Economia da Sobrevivência

O garimpo é, para muitos, o último refúgio de sobrevivência. Em distritos como Manica, Sussundenga e Báruè, o desemprego juvenil ultrapassa 30% (INE, 2023). A agricultura familiar está em declínio, e as oportunidades urbanas são escassas.

O garimpo oferece algo que o Estado não oferece: liquidez imediata. Um dia de trabalho pode render o suficiente para alimentar uma família, mesmo que custe a vida.

Essa economia da sobrevivência é, paradoxalmente, uma das bases silenciosas da estabilidade social. Milhares de famílias sobrevivem graças ao ouro extraído em condições sub-humanas. Por isso, erradicar o garimpo à força é não apenas injusto, mas perigoso. Seria cortar a última tábua de salvação de comunidades inteiras sem oferecer alternativa.

O desafio real é transformar essa economia de sobrevivência numa economia de cidadania, onde o trabalho é formalizado, os riscos são controlados, e os lucros são distribuídos de forma justa.

  1. A Face Invisível: Saúde e Ambiente

Os impactos do garimpo vão além das mortes imediatas. A exposição prolongada ao mercúrio, usado para separar o ouro, causa graves danos neurológicos e contamina rios. Mulheres e crianças estão entre as mais afectadas, pois lidam com o processamento do minério em casa, sem qualquer protecção.

Os dados sobre contaminação em Manica e Sofala são alarmantes: estudos independentes indicam concentrações de mercúrio em rios e solos acima dos limites toleráveis pela OMS (CIP, 2025). A pesca local foi comprometida, e a fauna ribeirinha desaparece.

Ao mesmo tempo, as minas abandonadas tornam-se armadilhas. Sem planos de reabilitação ambiental, crateras abertas acumulam água e transformam-se em criadouros de doenças. Portanto, o garimpo ilegal não é apenas um problema económico, é também uma questão de saúde pública e de justiça ambiental. Qualquer política que ignore esse duplo impacto (humano e ambiental) será incompleta e ineficaz.

  1. As Mortes como Espelho da Nação

Cada garimpeiro soterrado em Manica é um lembrete brutal daquilo que Moçambique ainda não quis enfrentar: o abismo entre os discursos de desenvolvimento e a realidade dos que vivem em zonas de mineração.

O país orgulha-se de suas potencialidades minerais, mas fecha os olhos para o custo humano dessa riqueza. O ouro de Manica, o rubi de Montepuez e a grafite de Balama têm alimentado narrativas de prosperidade, mas também multiplicado os cemitérios anónimos.

Essas mortes não são apenas tragédias locais. Elas revelam o fracasso de um modelo de desenvolvimento que privilegia o capital e negligência o humano. São o retracto cruel de um Estado que ainda não escolheu entre proteger vidas ou proteger lucros.

  1. A Formalização como Caminho Possível

Experiências em países como Tanzânia, Gana e Burkina Faso mostram que é possível formalizar o garimpo artesanal sem destruir o sustento das comunidades. A chave é combinar licenciamento simplificado, assistência técnica, acesso a crédito e mercados legais de compra.

Em Moçambique, o governo poderia criar um programa nacional de formalização por camadas:

  • Primeira camada: registo de cooperativas locais com assistência técnica.
  • Segunda camada: micro-concessões legalizadas, com apoio à segurança e à comercialização.
  • Terceira camada: integração progressiva com empresas maiores, mediante parcerias e joint ventures.

Essa abordagem permitiria reduzir o número de mortes, aumentar a arrecadação fiscal e promover inclusão social. Mas nada disso acontecerá sem vontade política real, e sem enfrentar os interesses instalados que lucram com a informalidade.

Conclusão

O ouro de Manica é um espelho. Ele reflecte o brilho da ganância e a sombra da injustiça. Nas suas partículas microscópicas está condensado o dilema de Moçambique: um país rico em recursos, mas pobre em humanidade.

Enquanto os corpos dos garimpeiros continuam a ser retirados da terra, o país deve fazer uma escolha moral: continuar a transformar a pobreza em negócio ou transformar o negócio em dignidade.

As mortes de Manica não são o preço inevitável do desenvolvimento. São o resultado de escolhas políticas, omissões e conivências. E enquanto o ouro moçambicano continuar a sair brilhante para o mundo, talvez devêssemos lembrar que ele carrega consigo o sangue e o silêncio daqueles que a terra engoliu, invisíveis, mas não esquecidos.

 

 

 

 

Recomendações Políticas

  • Criação de um programa de emergência para mineração artesanal segura, incluindo mapeamento de minas de alto risco, treinamento básico em segurança e envio de equipas médicas móveis.
  • Revisão do quadro legal para simplificar o licenciamento de cooperativas mineiras, reduzindo custos e prazos.
  • Criação de centros de compra oficiais de ouro, com rastreabilidade, preço justo e pagamento bancarizado.
  • Formação e requalificação dos garimpeiros em técnicas seguras de escavação, processamento e gestão financeira.
  • Mecanismo de auditoria e transparência em concessões e exportações, com participação de sociedade civil e imprensa.
  • Responsabilização criminal para agentes públicos ou privados envolvidos em corrupção e tráfico de minerais.
  • Investimento em infraestrutura de saúde rural e estradas de acesso às zonas mineiras.
  • Criação de um fundo de reabilitação ambiental financiado por taxas sobre exportações minerais.
  • Cooperação regional com Zimbábue, Tanzânia e Malawi para controlar rotas ilegais de exportação.

Essas medidas não exigem milagres, exigem apenas prioridade política. Porque cada dia de inação significa mais buracos, mais desabamentos, mais famílias enlutadas.

 

 

 

 

 

Referências

CIP. (2025). O Custo Invisível do Ouro em Manica: Poluição hídrica por mercúrio e seus efeitos nas comunidades. Maputo. Centro de Integridade Pública.

DIÁRIO ECONÓMICO. (16.10.2025). Manica Volta a Ser Palco de Garimpo Ilegal Após Descoberta de Ouro em Gondola. Disponível em: Manica Volta a Ser Palco de Garimpo Ilegal Após Descoberta de Ouro em Gondola • Diário Económico.

INE. (2023). A Situação Socioeconómica da Juventude em Moçambique. Maputo. Instituto Nacional de Estatística.

MAQUENZI, J & Feijó, J (2025). Economia Ilícita em Cabo Delgado: Conivência e Conflitualidade entre Sectores de uma Classe-Estado e da População. In Destaque Rural n° 314. Maputo. OMR.

MAQUENZI, J. (17.10.2025). NAMANHUMBIR: Violência, Exclusão e Colonialidade na Nova Fronteira do Rubi. Disponível em: https://moz24h.co.mz/namanhumbir-violencia-exclusao-e-colonialidade-na-nova-fronteira-do-rubi/.

O PAÍS. (07.11.2025). Desabamento de mina pode ter causado a morte de 10 garimpeiros em Manica. Disponível em: https://opais.co.mz/desabamento-de-mina-pode-ter-causado-a-morte-de-10-garimpeiros-em-manica/.

VALOI, E. (15.10.2025). Três mortos na concessão da mineradora Gemfields/MRM. Disponível em: https://moz24h.co.mz/tres-mortos-na-concessao-da-mineradora-gemfields-mrm/.

 

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