Jerry Maquenzi
O conflito armado em Cabo Delgado, iniciado na madrugada do dia 05 outubro de 2017, transformou-se no mais prolongado e devastador episódio de violência em Moçambique desde a guerra civil. Oito anos depois, a província continua a ser palco de ataques, deslocamentos massivos e destruição de comunidades inteiras. O que começou como pequenos assaltos a aldeias isoladas, classificados pelo governo como acções de “bandidos armados”, revelou-se afinal uma insurgência com capacidade de se expandir, ocupar distritos inteiros e desafiar o Estado.

Até hoje, estima-se que o conflito tenha provocado 6.257 mortes directas, segundo dados de monitoramento de violência armada (ACLED, 01.10.2025), e gerado mais de 700 mil deslocados internos (OIM, 23.09.2021), que se espalharam por várias províncias em busca de refúgio. A violência não afectou apenas vidas humanas – também interrompeu o maior projecto de gás natural da África, envolvendo investimentos que ultrapassam 60 biliões de dólares (LATF, JÁ & ATI, 2020).
No centro deste conflito, portanto, não estão apenas questões religiosas ou ideológicas, mas sim uma intersecção entre marginalização histórica, exploração de recursos e interesses económicos globais. Cabo Delgado tornou-se o retrato cruel de um país onde vidas humanas valem menos do que moléculas de gás liquefeito.
Video: Estacio Valoi/Inedito/Ataque insurgente /Chitolo /Mocimboa da Praia/ 15 Marco 2018
- Da Marginalização ao Terror: O Início Sangrento
Quando os primeiros ataques ocorreram em 2017, o governo moçambicano reagiu com uma narrativa reducionista: tratava-se de pequenos grupos de marginais desorganizados. Essa leitura foi funcional para despolitizar o fenómeno e evitar que se debatessem as suas causas estruturais: pobreza, exclusão social, ausência do Estado em vastas áreas e falta de oportunidades para uma juventude maioritariamente desempregada.
Contudo, os métodos dos insurgentes mostraram rapidamente que o conflito tinha contornos mais profundos. As aldeias atacadas eram incendiadas, populações eram decapitadas e comunidades inteiras obrigadas a fugir. A violência tinha um carácter exemplar, buscando espalhar medo absoluto. Em distritos como Mocímboa da Praia, Macomia e Palma, os insurgentes chegaram a ocupar território por semanas, algo que não se coaduna com uma simples narrativa de “vandalismo armado”.
As histórias que emergiam desses ataques eram aterradoras. Testemunhas relatavam que, em algumas situações, partes do corpo das vítimas eram retiradas, sugerindo práticas ligadas a tráfico humano ou rituais de carácter obscuro. O sequestro de freiras católicas e o assassinato indiscriminado de empresários locais mostraram também que os alvos eram variados, indo de simples camponeses a membros da elite económica provincial.
Entre as figuras que denunciaram a brutalidade esteve o bispo Dom Luís Fernando Lisboa, que deu voz às vítimas e chamou atenção internacional para o que ocorria (Issufo, 19.08.2020). Por isso, foi perseguido e acabou transferido para fora do país. Essa saída forçada evidenciou a intolerância das autoridades a vozes críticas, mesmo em meio a uma crise humanitária de grandes proporções. A repressão atingiu também a liberdade de imprensa: o jornalista Ibraimo Mbaruco desapareceu misteriosamente em 2020 em Palma; o jornalista Amade Abubacar foi detido e encarcerado por reportar sobre deslocados; e os jornalistas Izidine Acha e Estácio Valoi sofreram agressões no terreno, num claro sinal de intimidação.
Ao mesmo tempo, as Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) mostravam incapacidade de resposta. Apesar de operações militares, não conseguiam reconquistar territórios nem proteger populações. Essa fragilidade abriu caminho para novas soluções securitárias e externas, que marcariam os anos seguintes.
- A Entrada de Mercenários: Fogo sem Victória
Face ao avanço dos insurgentes e à ineficácia das FADM, o governo optou por contratar empresas militares privadas. Em 2019 e 2020, actuaram em Cabo Delgado a sul-africana Dyck Advisory Group (DAG) e a russa Wagner. Ambas trouxeram armamento pesado, helicópteros de ataque e homens treinados.
Dyck Advisory Group (DAG)
Russa Wagner.
Contudo, os resultados ficaram muito aquém das expectativas. A Wagner abandonou rapidamente a operação, após perdas significativas e confrontos directos (Voa Português, 03.11.2019). A DAG, apesar de prolongar sua presença, foi acusada de bombardeamentos indiscriminados que atingiam populações civis tanto quanto insurgentes. A guerra aérea não conseguiu quebrar a capacidade de mobilidade dos insurgentes, que conheciam melhor o terreno e utilizavam tácticas de guerrilha (DW, 31.03.2021).
Durante esse período, helicópteros militares moçambicanos caíram em operações em Muidumbe e Mueda (Martinho, 15.04.2019; Martinho, 02.08.2019). Populações que se aproximaram dos destroços relataram encontrar grandes quantias de dinheiro espalhadas, levantando suspeitas de que os voos transportavam somas destinadas a esquemas de corrupção. Estes episódios reforçaram a percepção de que o conflito não era apenas uma guerra entre Estado e insurgentes, mas também um espaço fértil para enriquecimento ilícito.
Assim, a presença de mercenários não trouxe victórias militares significativas, mas deixou um rastro de violações de direitos humanos, corrupção e ainda mais desconfiança das populações em relação ao Estado.
- Forças Estrangeiras e a “Internacionalização” da Guerra
O insucesso das FADM e dos mercenários abriu caminho para a intervenção directa de Estados estrangeiros. Em 2021, o governo moçambicano aceitou o envio de tropas do Ruanda e da SADC, através da SAMIM (Missão da África Austral em Moçambique).
Essa intervenção mudou o rumo do conflito. Tropas ruandesas, bem treinadas e organizadas, conseguiram retomar distritos estratégicos como Mocímboa da Praia e Palma, que estavam sob domínio insurgente. Também asseguraram maior estabilidade na região onde estão localizados os megaprojectos de gás.
No entanto, a presença estrangeira revelou um paradoxo. Se por um lado trouxe victórias militares, por outro expôs a dependência de Moçambique em relação a forças externas.

- O Peso do Gás: Negócios Suspensos e Retomas Cautelosas
Nenhum outro elemento é tão central no conflito de Cabo Delgado quanto o gás natural. Com reservas estimadas em mais de 100 trilhões de pés cúbicos, o projecto representa investimentos superiores a 60 biliões de dólares, envolvendo multinacionais como TotalEnergies, ExxonMobil e ENI.
Em 2021, após o ataque a Palma, a TotalEnergies suspendeu as suas operações, invocando a cláusula de força maior. Esse gesto paralisou a construção da planta de liquefação em Afungi, interrompendo milhares de empregos e congelando um dos maiores projectos energéticos da África.
Nos anos seguintes, houve diversas tentativas de retomar o projecto. A TotalEnergies chegou a enviar missões de avaliação para verificar se as condições de segurança estavam reunidas. Contudo, os ataques persistentes em distritos periféricos impedem uma normalização plena.
Enquanto isso, empresas moçambicanas ligadas a elites políticas expandiram sua actuação em áreas de logística, segurança privada e fornecimento de bens às operações militares. Assim, a guerra abriu espaço para novos negócios, concentrados nas mãos de poucos.

O gás, que poderia representar uma oportunidade de desenvolvimento inclusivo, transformou-se em catalisador de exclusão. As populações locais não participam dos dividendos e continuam a sofrer deslocamentos, enquanto os grandes contratos beneficiam multinacionais e elites privilegiadas.
- Presente e Futuro: Morte, Negócios e Silêncio Cúmplice
Actualmente, os ataques insurgentes continuam, embora em menor escala nas sedes distritais. Estão mais concentrados em aldeias isoladas, onde a vulnerabilidade das populações é maior. O número de deslocados internos ultrapassa 700 mil pessoas, espalhadas em campos improvisados em Cabo Delgado, Nampula e Niassa. As condições são precárias: falta comida, abrigo, acesso à saúde e à educação.
Apesar desta realidade, em Maputo o discurso oficial é de optimismo. O governo anuncia novos investimentos, acordos e promessas de desenvolvimento. A narrativa estatal foca-se em garantir que as multinacionais retomem suas actividades, enquanto pouco se fala da situação humanitária dos deslocados.
A Rússia, por meio de declarações diplomáticas, procura enquadrar o conflito como parte da luta global contra o terrorismo, mas evita mencionar líderes locais ou as causas endógenas da violência. Essa narrativa serve aos interesses internacionais, mas não responde às necessidades concretas da população.
Ao mesmo tempo, proliferam empresas privadas de segurança em Moçambique, muitas delas controladas por figuras próximas ao poder político. Essas empresas lucram com contratos milionários para proteger instalações estratégicas, reforçando a percepção de que a guerra se tornou um negócio para poucos.
Video: Estacio Valoi/Inedito/Ataque insurgente /Chitolo /Mocimboa da Praia/ 15 Marco 2018
Conclusão
Oito anos de guerra em Cabo Delgado revelam um cenário devastador: mais de 6.257 mortos, mais de 700 mil deslocados e uma província transformada em palco de disputas internacionais. O conflito já não pode ser visto como simples terrorismo, mas como uma guerra híbrida, onde se cruzam pobreza, marginalização, corrupção, mercenarismo e, sobretudo a disputa pelo gás natural.
Enquanto em Maputo se anunciam investimentos de biliões de dólares, em Cabo Delgado multiplicam-se campos de deslocados e valas comuns. Essa contradição mostra o carácter selectivo do Estado: protege os interesses das multinacionais e das elites, mas deixa as populações abandonadas.
O conflito tornou-se uma guerra sem rosto definido, mas com interesses claros. O gás é o fio condutor, e o sangue das populações serve como moeda silenciosa que viabiliza negócios globais.
Cabo Delgado é hoje o retrato de uma guerra transformada em negócio, onde os silêncios cúmplices valem tanto quanto as balas disparadas.
Referências
ACLED. (01.10.2025). Mozambique Conflict Monitor Update: 15 – 28 September 2025. Disponivel em: https://acleddata.com/pt/update/mozambique-conflict-monitor-update-15-28-september-2025.
- (31.03.2021). Moçambique: Apoio aéreo do DAG termina na sexta-feira. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/mo%C3%A7ambique-apoio-a%C3%A9reo-de-grupo-militar-sul-africano-termina-na-sexta-feira/a-57065327.
Issufo, N. (19.08.2020). Bispo de Pemba: “Ninguém vai silenciar a igreja!“. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/bispo-de-pemba-ningu%C3%A9m-vai-silenciar-a-igreja/a-54624238.
LATF, JA & ATI. (2020). Do Eldorado do Gás ao Caos: Quando a Franca Empurra Moçambique para Armadilha do Gás. Les Amis dela Terre France, Justiça Ambiental & Amigos da Terra Internacional. Disponível em: https://www.foei.org/wp-content/uploads/2020/06/Gas-Mocambique_Portuguese.pdf.
Martinho, E. (15.04.2019). Helicóptero da Força Aérea cai em Mueda. Disponível em: https://opais.co.mz/helicoptero-da-forca-aerea-cai-em-mueda/.
____________. (02.08.2019). Helicóptero militar cai em Cabo Delgado. Disponível em: https://opais.co.mz/helicoptero-militar-cai-em-cabo-delgado/.
OIM. (23.09.2021). Mozambique — Baseline Assessment – Cabo Delgado — Round 13. Disponível em: https://dtm.iom.int/datasets/mozambique-baseline-assessment-cabo-delgado-round-13.
Voa Português. (03.11.2019). Publicação russa confirma morte de mercenários em Cabo Delgado, que pode ascender a 10. Disponível em: https://www.voaportugues.com/a/publica%C3%A7ao-russa-confirma-morte-de-mercen%C3%A1rios-em-cabo-delgado/5150750.html.