Por Jerry Maquenzi
Ao longo da última década, a Montepuez Ruby Mining (MRM), operada pela multinacional britânica Gemfields, extraiu mais de USD1,17 mil milhões em rubis da terra vermelha de Cabo Delgado. Mas apesar dos brilhos internacionais que estas pedras preciosas alcançam nos mercados de Singapura, Jaipur, Bangkok ou Londres, o brilho teima em não iluminar as comunidades que habitam o solo de onde são arrancadas.
Nos seus mais recentes relatórios, a empresa justifica o aumento dos custos operacionais – resultado da inflação global, do preço elevado dos combustíveis, da mão-de-obra e do reforço das medidas de segurança associadas à insurgência armada em Cabo Delgado. No entanto, enquanto a empresa contabiliza os seus desafios logísticos e financeiros, pouco ou nada se altera para as populações que, há anos, convivem com a exploração intensiva dos recursos naturais sem usufruírem dos seus frutos.
Este artigo questiona, com base em factos e trajectórias, quem tem realmente beneficiado da riqueza gerada pela MRM. Porque, apesar de tudo o que é extraído – em toneladas, milhões e promessas – a injustiça continua entrincheirada onde os rubis nascem.
- A Origem: Mwiriti, Lda e os primeiros passos da mina
A história começa em 2009, quando madeireiros furtivos encontraram rubis no mato de Namanhumbir. A descoberta levou à Mwiriti, Lda, empresa licenciada para caça desportiva e prestação de serviços, com ligações às figuras políticas, hoje amplamente reconhecido como beneficiários políticos da concessão. Em 2012, a multinacional britânica Gemfields compra 75% da joint venture, nascendo a Montepuez Ruby Mining (MRM) (CIP, 2018; Maquenzi e Feijó, 2019).
Críticos apontam que o sucesso inicial da MRM deveu-se não só à sorte geológica, mas sobretudo ao acesso político privilegiado. A ausência de licitação pública, o favorecimento a elites locais e o fraco escrutínio estatal tornam esta origem marcada pela captura do Estado. Desde cedo, o destino dos rubis pareceu traçado: serviriam os interesses de fora – e de poucos de dentro.
- Conflitos, repressão e o processo movido pela Leigh Day
A entrada em operação industrial levou ao despejo forçado de milhares de garimpeiros locais, que durante anos exploraram a zona de forma artesanal. A repressão foi brutal: surgem denúncias de violência privada, detenções arbitrárias, assassinatos e torturas.
Foi o jornalista moçambicano Estácio Valoi quem primeiro documentou de forma sistemática os abusos cometidos contra garimpeiros em Namanhumbir, revelando ao mundo a face oculta da mineração de rubis em Montepuez. Em reportagens publicadas no seu blog pessoal e no documentário Mozambique’s Gem Wars da Al Jazeera (2015), Valoi expôs casos de garimpeiros espancados, desaparecimentos forçados e práticas de repressão envolvendo forças de segurança privadas e estatais (Valoi, 2013; Al Jazeera, 2015).
Essas denúncias impulsionaram o debate público e prepararam o terreno para acções legais internacionais. Em 2019, o escritório britânico Leigh Day representou mais de 270 queixosos num processo contra a Gemfields no Reino Unido. A empresa aceitou pagar 5,8 milhões de libras para encerrar o caso, sem admitir culpa (Feijó e Maquenzi, 2019). Como parte do acordo, foi criado um fundo comunitário e estabelecido um mecanismo formal de queixas.
Essa fase evidencia a centralidade da violência na defesa do capital mineral. Os rubis, para chegarem limpos aos cofres de Singapura ou Londres, passam frequentemente por mãos sujas – não das comunidades, mas das estruturas de segurança que garantem a continuidade do investimento externo, muitas vezes à custa de vidas humanas e dignidade.
- Os ataques armados e a instabilidade
Desde 2017, Cabo Delgado mergulhou num conflito armado violento, com insurgência islâmica e militarização da região. Embora a mina MRM esteja fora do epicentro inicial dos combates, a sua presença atrai violência.
Em 2022 e 2024, ataques armados atingiram as proximidades das instalações da MRM. A reacção envolveu evacuações, uso de forças privadas e incremento da presença militar (Voa Português, 20.10.2022).
Estes eventos revelam a fragilidade do modelo de desenvolvimento extractivo: quando a segurança depende de armas e não de justiça, o investimento é, no mínimo, instável. Os rubis de Montepuez brilham sob constante ameaça – não por falta de valor, mas por falta de paz social.
- Os leilões milionários: riqueza que escapa
Entre 2014 e 2024, a MRM organizou 24 leilões que geraram mais de 1,17 mil milhões de dólares. Só em 2023, a empresa arrecadou mais de USD150 milhões.
Contudo, os dados mostram que apenas cerca de 24% desse valor (cerca de USD 285,5 milhões) é pago ao Estado moçambicano sob forma de impostos e royalties (Gemfields, 04.06.2024). E, mais grave ainda, só 2,75% (cerca de USD 7,9 milhões em 10 anos) desses valores são destinados às comunidades locais.
Enquanto as pedras atingem cifras astronómicas em mercados globais, a fatia que fica em Moçambique – e mais ainda nas comunidades produtoras – é insignificante. O país recebe parte dos seus impostos, e as comunidades quase nada (há relatos de falta de transparência na alocação destes recursos às comunidades locais). O contraste entre o preço das gemas (que ronda pouco mais de 300 USD/quilate) e a miséria do seu lugar de origem é, por si só, uma acusação.
- Responsabilidade social: doação ou distracção?
A MRM tem investido em acções de responsabilidade social (RSC): escolas, centros de saúde, cooperativas agrícolas, habitação e formação técnica. Em teoria, trata-se de devolver à comunidade parte do que dela se extrai.
Na prática, estas acções são modestas e vulneráveis. Muitos programas operam como vitrines institucionais, não como mecanismos sustentáveis de desenvolvimento.
Há mérito no esforço, mas ele esbarra na lógica extractiva: é o lucro que guia, e não o bem-estar local. Pergunta-se: é possível falar de responsabilidade social quando a redistribuição é mínima e os impactos negativos são profundos?
Conclusão: Os Rubis são nossos, mas para quem servem?
A saga da Montepuez Ruby Mining é, em última instância, um espelho da falência do Estado moçambicano enquanto guardião do interesse público. Enquanto os rubis atravessam o mundo em leilões milionários, o Estado limita-se a recolher dividendos simbólicos, sem qualquer esforço coerente para garantir justiça económica ou reparação social às comunidades que vivem sobre essa riqueza.
O Governo, em todas as suas esferas – central, provincial e distrital – tem sido cúmplice por omissão: não regula eficazmente, não fiscaliza de forma séria, não impõe contrapartidas estruturais à exploração. Aceita a promessa de “desenvolvimento” como justificação para a expulsão de camponeses, a repressão de garimpeiros e a militarização do espaço rural.
As instituições de justiça, por sua vez, nunca ofereceram resposta real aos abusos. Quando comunidades clamam por compensações, por legalização de terras, por protecção de direitos, são ignoradas ou reprimidas. Foi preciso um processo movido em Londres para que houvesse alguma reparação – uma denúncia contundente da fragilidade institucional interna.
Esta passividade – ou conivência activa – revela um Estado mais preocupado em agradar o investidor estrangeiro do que em defender o seu povo. Em vez de actuar como mediador justo entre capital e cidadania, o Estado tornou-se intermediário submisso, garantindo segurança ao lucro e abandono ao cidadão.
Por isso, a questão “quem beneficia dos rubis?” já nem se refere apenas à Gemfields, aos compradores ilegais ou à elite política. A resposta agora aponta também, com firmeza, para um Estado que se ausenta quando devia proteger, que se cala quando devia exigir, que lucra quando devia servir. O silêncio institucional é ainda mais grave quando contrastado com a coragem de vozes como a do jornalista Estácio Valoi, que expôs os abusos quando as instituições nacionais fingiam não ver. Foi preciso que um repórter independente enfrentasse ameaças para que o mundo soubesse o que acontecia em Montepuez. E foi preciso um tribunal estrangeiro agir, porque nenhuma instituição de justiça moçambicana teve a dignidade ou a autonomia para fazê-lo. Os rubis são de Moçambique. Mas enquanto a justiça for silenciosa, a imprensa for solitária e o Estado for cúmplice, nunca serão verdadeiramente do seu povo.
Referências
CIP. (2018). “Exploração de Rubi pela Montepuez Ruby Mining – Um Negócio Milionário com Fraco Contributo para Moçambique”. Centro de Integridade Pública. Maputo.
Feijó, João & Maquenzi, Jerry, (2019), “Indemnizações em Namanhumbir: Resolver Conflitos com mais Conflitos”. Destaque Rural nº 72. Setembro. Maputo.
Gemfields (04.06.2025). “Gemfields releases updated ‘G-Factor for Natural Resources’ figures to 31 December 2024”. Disponível em: https://gemfields.com/journals/gemfields-releases-updated-g-factor-for-natural-resources-figures-to-31-december-2024/.
Maquenzi, Jerry & Feijó, João, (2019). “Maldição dos recursos naturais: Mineração artesanal e conflitualidade em Namanhumbir”. Observador Rural nº 75, Observatório do Meio Rural. Junho. Maputo.
Valoi, Estácio, (25.06.2013). “Terra e minerais , todos pela mesma medida!” Disponível em: https://valoie.blogspot.com/search?q=nguiraz.
_______________, (10.12.2015). “Mozambique’s Gem Wars.” Disponível em: https://www.aljazeera.com/video/africa-investigates/2015/12/10/mozambiques-gem-wars.
Voa Português (20.10.2022). “Ataque em Montepuez obriga à evacuação de trabalhadores e suspensão de operações em mina de rubi”. Disponível em: https://www.voaportugues.com/a/ataque-em-montepuez-obriga-%C3%A0-evacua%C3%A7%C3%A3o-de-trabalhadores-e-suspens%C3%A3o-de-opera%C3%A7%C3%B5es-em-mina-de-rubi/6798372.html.
