Por Tiago J B. Paqueliua
Resumo
O presente artigo analisa, sob uma abordagem crítica multidisciplinar, o processo de legitimação estatal da violência informal em Moçambique, tendo como estudo de caso a visita e o louvor do Presidente da República, Daniel Francisco Chapo, à base da milícia conhecida como “Forças Locais”, no distrito de Mueda, província de Cabo Delgado.
Enquadrado nas celebrações do 63.º aniversário da FRELIMO, o gesto presidencial simboliza a oficialização da anarquia armada e a reconversão do Estado em agente conivente da brutalidade extralegal.
O artigo evidencia práticas recorrentes de espancamentos, extorsão sistemática em rodovias públicas, e falsificação de identidade para fins de saque, levadas a cabo por milicianos em aliança tácita com membros das FADM e da UIR.
Por fim, relaciona-se este fenómeno com um padrão histórico de instrumentalização e abandono de milícias pelo Partido-Estado, desde a década 70, revelando um ciclo crónico de irresponsabilidade governamental e falência do Estado de Direito.
Palavras-chave: Estado moçambicano, milícias, Cabo Delgado, militarização, segurança, impunidade, FRELIMO, ética governamental
1. Introdução: Estado, Soberania e Violência Informal
A presença ostensiva do Presidente moçambicano, Daniel Chapo, numa base das denominadas “Forças Locais”, em Mueda, celebrando as festividades partidárias da FRELIMO, ultrapassa os limites do simbolismo político.
Este gesto representa a reconfiguração do Estado como agente legitimador de actores armados não constitucionais, e não como regulador legítimo do uso da força. Longe de ser um acto de liderança estratégica em contexto de insurgência, trata-se de uma investidura oficial da barbárie armada.
Simultaneamente, multiplicam-se denúncias de abusos sistemáticos contra civis perpetrados por essas mesmas milícias, que impõem estados de sítio informais, instalam barricadas extorsivas e simulam ser grupos terroristas para saquear à população. Tal prática revela a erosão dos princípios de soberania legal, acentuando a degradação institucional e a perda de autoridade moral do aparelho estatal.
2. Violência Instituída: Milícias, Extorsão e a Normalização da Pilhagem
É particularmente alarmante a constatação de que, no troço rodoviário compreendido entre Silva Macua e Awasse, concretamente nos acessos a Mueda e Mocímboa da Praia, operam pelo menos onze chancelas (ou postos de controlo), onde cidadãos são coagidos a pagar subornos sob ameaça de violência física.
Estas práticas, levadas a cabo por membros das “Forças Locais” com a cumplicidade operacional da Unidade de Intervenção Rápida (UIR) e de elementos das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), são justificadas pelos perpetradores, com o argumento de não pagamento de salários — o que denota uma naturalização da delinquência, como meio de sobrevivência institucionalizada, ou como o dicionário da corrupção formalizada diz, “o cabrito come onde está amarrado”.
Esta realidade converte a estrada pública em território privatizado pela violência, e a figura do militar — antes defensor da nação — em agente informal de cobrança coerciva.
A lógica de “só passa quem paga” transforma a mobilidade em Cabo Delgado num ritual de expiação forçada, em que o cidadão comum é permanentemente rebaixado à condição de refém económico.
3. Repetição Histórica: Da Vigilância Popular aos Naparamas e Madjêrmanes
A actual situação insere-se numa genealogia de práticas governamentais baseadas na instrumentalização circunstancial de forças não regulares, cujos antecedentes remontam ao período pós-independência.
Samora Moisés Machel distribuiu armas de forma indiscriminada à milícia, criando um ambiente securitário informal, centrado na fidelidade ao partido e não à Constituição, e depois a forças como os Naparamas, imbuídas de misticismo e armadas precariamente, cuja acção violenta foi explorada e depois abandonada sem qualquer reintegração ou reconhecimento oficial.
Idêntico destino foi reservado aos Madjêrmanes, ex-trabalhadores na ex-RDA, trazidos para o país como trunfo ideológico, e posteriormente descartados num silêncio institucional vergonhoso.
Esse padrão revela a recorrência de um Estado instrumentalizador, que utiliza corpos sociais vulneráveis como escudos ou braços auxiliares de guerra, mas não como sujeitos de direitos. Tal histórico compromete não apenas a legitimidade ética do Estado, mas alimenta ressentimentos sociais latentes, propícios à instabilidade futura.
4. A Fronteira Dissolvida entre Forças Estatais e Banditismo
A denúncia de que milicianos fizeram-se passar por insurgentes armados para roubar bens da população é uma prova do grau de indistinção entre o aparato estatal e os actores da criminalidade organizada.
Quando milícias armadas e fardadas simulam ataques terroristas para assaltar civis, o Estado já não apenas falhou: ele transfigurou-se no seu contrário.
Tais práticas atentam contra o próprio conceito de ordem pública e segurança nacional, uma vez que qualquer tentativa de discernir entre legítimos e ilegítimos agentes da força se torna impossível. O resultado é a erosão do contrato social, onde o cidadão perde completamente a confiança no Estado como guardião da paz e da legalidade.
5. Ética do Silêncio e Governamentalização da Barbárie
A opção do Chefe de Estado de louvar publicamente uma milícia acusada de tais práticas, sem emitir qualquer nota de condenação, configura uma cumplicidade ética e política.
O silêncio institucional — que já seria condenável — é aqui substituído por exaltação pública, conferindo aos actores armados informais uma legitimidade simbólica perigosa.
Esta governação pela indiferença — ou pela conivência activa — reforça a percepção de que, em Moçambique, a lealdade partidária está acima do respeito pela Constituição, pelos direitos humanos e pela justiça.
O acto de louvor presidencial converte-se, assim, numa autorização implícita da desordem armada e da pilhagem quotidiana, fragilizando o próprio edifício republicano.
6. Considerações Finais
Está a desfazer-se em milícias, e jaze numa bifurcação crítica: ou rompe com a lógica da militarização informal e da impunidade institucionalizada, ou aprofundará o colapso do seu já fragilizado Estado de Direito.
A manutenção da actual trajectória — marcada pela oficialização da violência extrajudicial — poderá conduzir a um cenário de senhorialismo armado, com feudos militares informais a disputar autoridade sobre os cidadãos.
É urgente que se estabeleça um plano nacional de desarmamento, reintegração e reconversão dos actores armados informais, bem como um mecanismo eficaz de responsabilização penal para os abusos cometidos.
A reconstrução da confiança entre o cidadão e o Estado depende da capacidade governamental de se reconstituir como garante da justiça, e não como cúmplice da pilhagem armada.
Bibliografia
1. Cahen, M. (1999). Moçambique: A Revolução Impossível. Lisboa: Vulgata.
2. Hanlon, J. (1984). Mozambique: The Revolution Under Fire. London: Zed Books.
3. Ncomo, B. L. (2004). Uria Simango: Um Homem, Uma Causa. Maputo: Edições Nováfrica.
4. Observatório Cidadão para a Transparência e Justiça Social (2024). Relatório Interno sobre Abusos e Extorsões nas Vias de Cabo Delgado.